sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Desafio de Escrita - Autocensura

Mao, Andy Warhol










Desafio de Escrita #4
Tema: A Maldição das Cuecas Chinesas
Data: 31 de Dezembro
300 Palavras
Autocensura
Censura, censura, autocensuro-me perante o grande Mao, ofereço a mim própria o castigo perante o poderoso Mao, líder supremo que permitiu o Grande Salto em Frente, censura, censuro-me, autocensuro-me pela maldição que me assolou, pela grande maldição que me envergonhou, pela maldição que me humilhou perante a glória da minha grande nação! Afirmo hoje, afirmo agora e amanhã, afirmo para toda a minha vida, a minha fraqueza, a minha incapacidade para utilizar da força do grande líder para controlar meu corpo, minha carne! Afirmo que sim, fui eu, fui eu quem sujou as cuecas, fui eu a mandatária da maldição das cuecas, sujas de sangue, sujas de lixo, lixo humano, lixo, autocensura! Se meu corpo estivesse prenhe da nova vida sagrada, da semente do grande líder, não teria o sangue menstrual, calamidade, anti-natalidade, não teria o sangue sujado as lindas cuecas ofertadas por meu poderoso presidente para que meu útero contivesse sua nova vida, sua descendência, sua bela, forte e sagrada prole que nos permitira continuar a revolução, censuro-me, fui eu, autocensura, autocensura, autocensura! Peço perdão e vergasto minhas mãos, peço que vós, meus líderes, meus sindicatos, peço que me tirem do corpo este útero amaldiçoado que não permite vida em si, este órgão inútil, esta maldição que suja as cuecas, as cuecas ofertadas, castiguem-me, castiguem-me, autocensura, censura, castigo! Só assim poderei algum dia receber o perdão.

sábado, 4 de novembro de 2017

Desafio de Escrita - Manifesto da Pessoa Azul

Blue Person, Christina Varga









Desafio de Escrita #3
Tema: Preconceito
Data: 30 de Novembro
300 Palavras

Manifesto da Pessoa Azul

                Não falarei muito, pelo menos nesta fase, do processo. Devo apenas dizer que foi muito rápido e indolor. A consequência podem vê-la à vossa frente. Sou uma pessoa azul. As declarações que faço são, portanto, enquanto pessoa que tem um tom de pele diferente. Um tom de pele inusitado mas não impossível pois, como podem ver, sou azul. Falo-vos para inquirir sobre os direitos que eu e outras pessoas azuis deveríamos ter na sociedade actual.
               
                Durante este curto espaço de tempo em que tenho a tonalidade de pele azul, fui vítima de muitas actividades insensíveis e por vezes quase terroristas pela parte das pessoas de pele de cor normal. Para começar, aquando a finalização do processo (que, devo lembrar, foi puramente acidental), pesquisei um pouco e descobri que existem apenas zero virgula zero um por cento de pessoas azuis no nosso planeta. A ocorrência é tão rara que a maioria das pessoas, as de pele de cor normal, pensam ser impossível. Quando saí à rua a primeira vez, afastaram-se de mim. Pensavam que eu era um mutante, que tinha vindo de Chernobyl, que tinha poderes extra-sensoriais, que vinha de outro planeta… Mas isso é tudo injusto. Afinal, a tonalidade de pele azul é um dado cientificamente provado e não tem qualquer relação com ondas radioactivas ou qualquer outra ideia que as pessoas possam ter.

                Falo-vos agora porque me parece injusto que as pessoas de pele de cor normal tenham direitos acrescidos devido apenas ao seu tom de pele, que é normal. As pessoas de pele de tonalidade azul deveriam ter quotas para garantir a sua empregabilidade, já que ainda existe muito patente a ideia de que nós, os azuis, temos capacidades intelectuais superiores, o que é de todo mentira. Somos apenas seres humanos normais. Deveria haver um grupo que lutasse pelos direitos das pessoas de pele de tonalidade azul. Para esclarecer a população em geral de que não somos estranhos, nem que somos entidades superiores e, muito menos, entidades destrutivas que tencionam tornar toda humanidade em pessoas azuis.

                Só gostava que pensassem a verdade: somos azuis, mas somos normais.

domingo, 29 de outubro de 2017

Desafio de Escrita - Floresta Digital

A Floresta, Paul Cézanne










Desafio de Escrita #1 (proposto no grupo Eden)
Tema: Era da Informação
Data: 7 de Novembro
300 Palavras

 
Floresta Digital


                Depois do flagelo dos incêndios florestais que assolaram o nosso país no final dos anos dez do presente século, foi decidido pelo governo implementar nova tecnologia vegetal, que havia sido criada num laboratório californiano no ano de 24.

                Através da alteração genética do ADN mitocondrial dos eucariotes vegetais, foi possível inserir um gene biomecânico e biométrico. Originalmente, tal havia sido criado para medir e pesar os vegetais utilizados para a alimentação humana, um passo à frente do transgénico porque, para além de transgénico, era quase andróide. Apesar das manifestações ecologistas sobre a destruição da vida vegetal tal como a conhecemos, tal projecto caminhou a passos largos para a sua conclusão devido a uma descoberta fascinante: a tal alteração genética tinha o efeito secundário de transmitir às plantas a capacidade de produzir rede wi-fi.

                A partir do momento em que semelhante descoberta foi lançada ao público, imediatamente a população generalista de todas as cidades correu a investir nas acções da empresa, que rapidamente colocou a sua tecnologia disponível ao público. Agora, como sabemos, poderemos comprar um vaso de ervas aromáticas, como salsa ou coentros, e ter rede wi-fi livre, desencriptada, na nossa casa. As consequências, tal como vimos nos últimos anos da década, foi a falência progressiva dos gigantes das telecomunicações, facto que impediu a implementação do projecto do nosso país por pressão unilateral destas em aposição às ideias do governo.

                Mas, graças aos votos da minoria de esquerda, foi possível o estudo, criação e implementação do projecto “Floresta Digital”. Assim, nos tempos que correm, temos as áreas ardidas completamente reflorestadas, sendo que os incêndios de Verão foram essencialmente eliminados. Afinal, as árvores nunca serviram para grande coisa excepto para criar o oxigénio que respiramos. Agora que temos uma nação com uma área de rede wi-fi livre invejável pelos outros países Europeus, todos desejam plantar a sua própria árvore de forma a contribuir socialmente para a comunicação sem fronteiras, sem limites e sem qualquer tipo de valor acrescentado.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Desafio de Escrita - Segredinhos

@Pixiv


Desafio de Escrita #2: 
Tema: "Segredo"
Data: Final de Outubro
300 palavras
Segredinhos

                Éramos meninas, era a primária. Recreio e eu sentia os grãos de gravilha a estalarem por baixo da sola de borracha das minhas sapatilhas, acocorada no meio do campo, observando as pedras, o cimento, o calor das pedras e do cimento. A minha amiga correu para mim, seu cabelo loiro esvoaçando de energia, acocorou-se ao meu lado e observou comigo.

                “Tenho um segredo para te contar.”

                “Tenho um segredo, não podes contar a ninguém.”

                “Não podes contar a ninguém, nunca.”

                Senti os seus lábios húmidos da baba do lanche a tocarem a minha orelha. Senti um arrepio que me percorreu a cabeça até ao cérebro. Tinha horror, horror aqueles lábios que se moviam em palavras que eu nem sequer entendia. Era um segredo muito comprido e não ouvi nada, ouvia os rapazes a jogarem à bola, as meninas a jogar ao elástico, ouvia os pássaros e o restolhar das folhas das oliveiras, ouvia os gritos das crianças mais pequenas, as brincadeiras, ouvia tudo. Tudo menos o segredo.

                “Prometes que não contas a ninguém?”

                Prometi.

                “Jura que não contas a ninguém.”

                Jurei.

                No recreio seguinte, o último antes de irmos para casa, procurei a minha amiga. Já me tinha esquecido do segredo que não tinha ouvido e queria brincar com ela aos animais, nós gostávamos de fingir que éramos animais arborícolas e subíamos às árvores. Encontrei-a rodeada de rapazes, a chorar, a chorar. Olhou para mim e o seu grito assustou-me a ponto das lágrimas me fugirem.

                “Contaste o meu segredo a toda a gente!”

                Nunca mais brincámos aos animais.

                Até hoje não sei qual era o segredo.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

A Criação do Mundo

A Criação do Mundo e a Expulsão do Paraíso
Giovanni di Paolo










A Criação do Mundo

Ando por cima do brilho do sol
Gotas de luz desfazendo-se nos meus dedos
De suas migalhas nasce então a criação do mundo.

Se no início era o nada,
Então eu era tudo.
E no meu sonho
Decidi criar.
Primeiro apareceu o dia e a noite
Por isso apareceram também o sol e a lua
E logo por isso apareceram todos os deuses
Não tinha lugar onde ficar.
Por isso inventei a água e a terra e logo veio a sopa primordial
E moléculas
E os monera
E os eucariotes
E quando dei por mim olhava para a rosa vermelha de3pendurada na grade branca do quintal
E olhava para a vespa que a polinizava e se alimentava das larvas de mosquito
E olhava para as larvas contorcendo-se na lama de um ralo entupido
E quando dei por mim existia já a árvores e os espinhos,
A pedra e a esmeralda,
O rio e a nuvem,
A montanha e a areia,
O homem e a mulher e outra coisa qualquer.
Com isso nasceram os animais e eu nasci entre eles
Vi o mundo que havia criado
O austrolopiteco,
A criação do instrumento,
A charrua,
A corrente,
A cruz,
Os pregos,
A fogueira,
Homens ordenados em fileira.
Andei entre eles e toquei-lhes as faces, como se eu fosse o vento
Não sabiam que eu os tinha criado
Gritavam pelos deuses,
Quando eu nunca inventei os deuses.
Mas quando existe o mundo
Existe sempre tempo.
E o tempo passou
E continuei a ver o mundo que tinha criado
Os escravos,
Os bacamartes,
A auto-ajuda,
O LSD,
A vacina para a hepatite,
O vírus do HIV,
A mini-saia,
O rádio Hi-Fi,
O super-herói,
O filme de acção,
O género Noir,
E a televisão,
E as pessoas continuavam ordenadas
Andei entre elas e toquei-lhes
Percebi que já não havia deuses
E que brevemente nem pessoas haveria.
Eu criara este mundo
Porque queria ver a rosa vermelha
Porque queria ver a abelha
Mas no mundo que eu criei, já ninguém queria ver nada.

Rolo na palma da mão uma pedra azul.
Fria, a pedra azul.
Será que a partir do momento em que dizemos uma coisa em voz alta
Ela passa a fazer parte
Da nossa existência?
Tenho a certeza que mesmo eu,
Mesmo eu
Mesmo eu
Não passo do sonho nocturno de uma princesa.