segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Aracnídeo

Louise Bourgeois
 
 
 
 
 
Aracnídeo
 
                O estábulo está quente, cheio de vapores de fezes no meio da palha. A luz entra por uma janela no topo e tudo está amarelo, caem os raios de sol, líquidos e cheios de partículas de pó. Afago o cavalo, um pequeno cavalo castanho de extremidades negras, de crina negra, de cauda negra, de olhos negros e com muitas pestanas, que me fixam num pedido de ajuda.

                “Quero escapar”, dizem os olhos do cavalo, a voz muda do cavalo. Tem uma corda ao pescoço, tem correntes nas patas, não se pode deitar, não pode comer o seu feno cheiroso, não pode comunicar com o exterior. Não te posso ajudar, nunca te pude ajudar, tu eras meu amigo e eu tive de partir.

                A seu lado, separados por uma cerca, estão outros animais. Está um pónei muito peludo, que mastiga a sua ração com ar indiferente. E no centro, bem no centro, está uma porca parideira, presa por barras de metal, mordendo as barras enquanto se vê obrigada a amamentar a sua prole, dois leitões muito gordos e muito rosados e um tigre. O tigre é enorme e a sua pelagem cor de laranja com listras aparenta estar molhada, dividida em flocos, como um algodão doce em forma de tigre. Parece-me que ele é inofensivo, mas vejo-o a dilacerar as tetas da porca, enquanto mama, enquanto lhe suga o leite que deveria estar reservado para os verdadeiros filhos.

                Acordo.

                Estou na minha cama, na minha outra cama, F. dorme a meu lado. Ergo-me lentamente, como se emergisse de um sono subterrâneo, os meus olhos pousam na parede. Tremo. Na parede branca e irregular está uma aranha, algo que se parece com uma aranha, um aracnídeo bizarro, demasiado grande para que possa ser real. O seu centro é um polígono feito de café com leite, com uma penugem aveludada. No centro, um círculo todo branco. Como um olho, um olho em que da pupila sai a teia, sai a sua teia, uma teia transparente que me envolve e asfixia, tenho de fugir. As patas do aracnídeo são enormes, são de madeira balsa, articuladas como uma marioneta. São oito. Serão oito? Quatro. Dezasseis. Vinte. Não. São oito. O seu número multiplica-se e divide, quanto mais olho para o bicho maiores parecem as suas patas, são patas horríveis e se me tocarem morrerei, morrerei de nojo, morrerei a gritar, tenho de fugir. F. dorme. Corro para a porta, mas o aracnídeo salta.

                Um enorme salto, um salto em parábola, mas muito lento, muito leve. O bicho pousa suavemente na porta. O olho que está pintado no seu corpo roda, está fixado em mim. Não posso fugir. Da pupila sai a sua teia.

                Tento acordar F. F. dorme. Enrolo-me sob o seu braço, para me proteger do aracnídeo. “O que é aquele bicho?”, pergunto eu em silêncio. As teias das aranhas no candeeiro do tecto tremem com a luz do sol, com o pó da luz do sol.

                “É o cavalo. É o cavalo que se libertou.”
 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Escrita Narrativa na Oficina do Cego - Quarta Sessão

Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Continuação dos Trabalhos Finais
 
 
Criação de Personagem - Personagens Secundários
 
 
Anabela - Personagem "Oculta"
 
  • A ex-namorada
  • Não há explicação sobre o porquê de ter deixado Carlos André. Possivelmente porque não viu evolução familiar na relação .
  • Nunca dizer o nome dela --> "Ela"
  • Cabelo curto e escuro, óculos de massa, calças de ganga e t-shirt. Cheira bem.
  • Não se preocupa com grande coisa.
  • Não tem sentido musical, nos concertos a que iam juntos ficava sempre encostada à parede
  • Mas quando bebe, dança que nem uma louca
  • é sempre verdadeira e adora gatos

Manela e Malaposta - Personagens Terciários
  • Amigos do reino do metal, fazem pandã
  • Mas não têm uma relação, pois Manela é homossexual
  • Saem para os copos e concertos quase todas as semanas com Carlos André
  • Conheceramse os três no mesmo bar, durante uma rusga- Foram os únicos sem nada no grupo em que estavam e ficaram amigos.
  • Estilo pretinho básico, ele é bastante gordo e tem barba. Ambos tez morena.

Mike - Personagem Secundário
  • Amigo deo jazz
  • Nome verdadeiro é Miguel Abrantes
  • Toca saxofone alto, num agrupamento jazzístico chamado "Azul Blue"
  • Conheceram-se por acaso no Bairro Alto: Carlos André fico9u à porta do bar onde ia ver um concerto, porque só na altura descobriu que a banda se chamava "Rats of Doom". Mike ofereceu-lhe um voucher, que andava a distribuir, com uma bebida num pbar de jazz e ele aceitou, porque sempre tinha gostado do estilo.
  • Alto e careca
  • Toca com sentimento
  • Quer incluir Carlos André no seu grupo de amigos, mas este fica demasiado tímido com estranhos
 
Antifa - Personagem Secundário
  • Gato
  • Tigrado
  • Foi encontrado por Carlos André no motor de um carro da oficina onde trabalha, muito pequeno, molhado e assustado
  • Gosta dos pratos de bacalhau em que Carlos André é especialista, que lambe às escondidas quando estão a arrefecer
  • Ração preferida é a de cordeiro com arroz, brinquedo preferido é uma caixa de cartão
  • Castrado
  • Arranha as pernas de uma única cadeira
  • Gosta de se sentar em cima da cara das pessoas quando estão a dormir.




Nota: A partir de agora a história vai ser surpresa, portanto não vou falar mais dela. Vou apenas colocar o que fizemos em cada uma das sessões para irem acompanhando o processo. :)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Escrita Narrativa na Oficina do Cego - Terceira Sessão

Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Exercícios e Início dos Trabalhos Finais

Trabalho para Cabeça - Duas histórias baseadas em fotografias

Primeira História - Álbum
 
 
                A sua primeira fotografia foi ainda no tempo das máquinas analógicas. Foi uma fotografia tirada por acaso, numa festa entre amigos. Ele estava com a sua camisola azul, já cheia de nódoas de vinho e ela com o vestido de alcinhas que tinha levado propositadamente, na eventualidade de encontrar o seu grande amor. Mas na altura, ainda não se conheciam, mostra-o a fotografia. Podemos ver que ele olha para ela concentrado, quase podendo adivinhar o seu desconforto roçando-se contra as calças. E ela tem um esgar de nojo, mas muito mais tarde explicaria sempre que era porque tinha encontrado um caracol na salada.

                Depois dessa fotografia vieram muitas mais. Eles gostavam de tirar fotografias juntos e viajavam muito. O álbum estava cheio delas, mas o casal tinha um acordo: só teriam um álbum para guardar todas as fotografias da sua vida. À medida que os anos iam passando, iam retirando as fotografias menos importantes. Assim, sobravam esta primeira, que os fazia recordar esse momento tão estranho que depois evoluiu para outros, cada vez menos estranhos, cada vez menos extraviados, cada vez mais íntimos. De vez em quando, abriam o álbum e riam-se um do outro, recordando os momentos felizes. Nunca tiravam fotografias de momentos menos bons. A fotografia era uma arte da pura felicidade.

                Depois vieram os telemóveis e as fotografias dos telemóveis. O álbum ficou esquecido dentro da jornaleira, ganhando camadas e camadas de pó, fino ao início mas agora inexplicavelmente espesso. Perderam o hábito de eliminar fotografias e agora tinham todas, todas guardadas dentro do aparelho. Perderam o hábito de as olhar juntos, cada um usava o seu e ria-se de si para si, sem explicar à outra parte a causa da alegria. A vida que era um álbum, passou a ser uma sucessão de fotos. Ele sentia que tinham perdido o significado, mas não lhe disse nada. Achava que se dissesse alguma coisa, deixariam de tirar fotografias de todo. Se não tivesse as fotografias, como a iria recordar?

                Tinha razão. Só através das fotos a iria recordar agora. Sentia-se envelhecido e triste, sentado na estação dos barcos, esperando o Cacilheiro que o iria levar a casa. Depois do funeral, como seria estar na sua casa? Pegou no telemóvel e colocou os óculos sobre as sobrancelhas. Era mais fácil ver ao perto sem óculos. E começou a seleccionar as fotos. Viu-as uma a uma, enquanto esperava pelo barco. E apagava-as, apagava-as repetidamente, como se nunca mais as quisesse ver. Mas o que ele queria era voltar ao álbum, encardido na jornaleira. Essas sim, eram as fotografias importantes.

Segunda História - Prédio Florbela Espanca


                Este é um bairro em que todas as ruas têm nomes de escritores. Costumo sentar-me no vão da escada de um dos prédios da Florbela Espanca. Sento-me aí a beber a minha litra e a fumar os meus cigarros, enquanto espero que os meus amigos cheguem. Depois vamos para o miradouro. Mas há umas semanas comecei a reparar em movimentos estranhos dentro do prédio, aquele prédio Florbela Espanca.

                Eu gosto de animais. Sempre gostei, nunca vou deixar de gostar. Então, quando eles passam por mim, soltos ou à trela, reparo neles. Uma dessas noites, reparei num homem velho, de bigode branco e óculos, vestido com um colete cheio de bolsos. Trazia consigo um caniche pequenino e amarelado da sujidade, que parecia altamente excitado por vir passear à rua. Achei estranho o passeio demorar tão pouco tempo, pois eles voltaram poucos minutos depois.

                Teria ignorado o assunto, se passado uns dias não tivesse visto o mesmo homem, velho, de bigode branco e óculos, desta vez vestido com um polo azul, abrindo a porta para dois outros cães, um cocker e um podengo, ambos castanhos. Tal como o outro, estavam muito excitados. Tal como o outro, o seu passeio foi extremamente curto.

                Como achei estranho, passei a ir para o vão de escada, com a minha litra, todas as noites. E todas as noites saia alguém do prédio, sempre com um cão diferente. Caniches variados, um ou outro rafeiro, até mesmo um pastor alemão. Adultos, velhos, cachorros, saíam cães de todos os tipos de dentro daquele prédio. Podia tirar as minhas conclusões… Aqueles acumuladores de animais, psicopatas, deviam ter a casa cheia de gente e cheia de animais. Pensei em dizer à polícia e fui-me embora para procurar o número. Quando me afastava, ouvi os gritos. Horríveis gritos de cães, ganindo, chorando.

                Estavam a matá-los.

                Teria de resolver o assunto pelas minhas próprias mãos.

                No dia seguinte, pedi a pistola emprestada ao meu irmão, que é polícia. Ele pensou que era apenas para mostrar aos meus amigos e eu não o contrariei. Fui para o prédio Florbela Espanca e aguardei, encostada à porta. Vi uma pessoa a sair. Uma rapariga vestida de cor de rosa, com os cabelos pintados de ruivo. Não trazia cão.

                “Puta, agora substituíste os teus cães por gatos?”

                Aproximei-me por trás dela e toquei-lhe no ombro. Quando ela se virou, encostei-lhe a pistola ao queixo e sussurrei algumas palavras, explicando as consequências dos seus horríveis actos contra animais.

                “Mas eu não tenho animais! Eu sou alérgica!”, repetia ela.

                Tinha os olhos verdes, delineados, muito abertos, muito brilhantes. O seu ar era quase cómico. Era como se ela fingisse estar a morrer. Mas não. Ela estava mesmo a morrer.
 
 
 ESPIGA PINTO - Desenho de Florbela Espanca




Criação de Personagem - Ficha da Personagem

Nome - Carlos
Apelido - André
Alcunha - Carlos

1. Dimensão Psicofísica

Sexo e Idade - Homem; 31 anos (feitos há pouco tempo)
Tamanho e Peso - Alto e Magro
Aparência - Pele clara, cabelo e barba castanhos; olhos claros, variam entre verde e cinzento; orelhas e nariz grandes; cabelo a rarear
Defeitos - Cicatriz na bochecha esquerda, da primeira vez que se barbeou; marcas de acne; mas está tudo tapado pela barba!
Hereditariedade - Saudável
Aspecto - Restos de um estilo de vida industrial, veste preto e botas de biqueira de aço até hoje; um pouco mal cuidado, só toma banho dia sim dia não; tatuado, mas coberto pela roupa (pentagrama invertido no ombro direito; manga tribal no braço esquerdo; cruz celta muito detalhada na barriga da perna direita)
Acessórios - NON

2. Vida Familiar e Social

Classe Social - Remediada
Profissão - Trabalha numa oficina, de segunda a sábado com domingos escalados; sai tarde muitas vezes; salário podia ser melhor, mas adora o seu trabalho
Habilitações académicas - 12º, com curso profissional para a oficina
Ascendentes - Pais separados (Mãe foi para o Brasil quando Carlos tinha 9 anos; Pai está muito tempo afastado, pois é da Marinha); foi criado por Avó, casa dos 70-75 anos
Estado Civil e descendentes - Solteiro; tinha uma namorada que vivia com ele, mas ela acabou tudo; tem um gato (siamês? Tigrado?)
Nacionalidade - Português; pais e avós são do Ribatejo (Almeirim)
Espiritualidade - Experimentou o neo-paganismo e depois o satanismo; hoje em dia identifica-se como agnóstico
Filiações políticas - Aos 18 anos militou pelo Partido Comunista, depois experimentou o anarquismo organizado; agora, vota em branco (mas exerce sempre o seu direito de voto)
Hobbies - Música core e metal; jazz às escondidas; ir a concertos; sair para os copos; colecciona pequenas figuras de gatos
Relevância social - É amigo do seu amigo
 
3. Vida Psicológica

Vida amorosa - Muitas noites bem passadas; mas apenas duas namoradas a sério; gosta de se comprometer emocionalmente; ainda não recuperou do término da última relação
Crenças e Sonhos - As pessoas são más (Malice Mizer); um dia quer vir a ter uma oficina própria; gostava de um dia aprender a tocar baixo e fazer uma banda de grindcore ("Rotten Grapes")
Impedimentos e desilusões - A namorada que acabou tudo; o primeiro gato que teve, que foi atropelado; quando não está na noite pode ser muito tímido
Temperamento - Melancolia; calmo (fora do mosh: liberta lá todas as frustrações, medos e nervosismos)
Atitude - Resignado ao facto de nunca poder evoluir
Complexos - Pavor de ratos e ratazanas (um dia foi à casa de banho e estava uma enorme na sanita)
Inteligência - Numérica não é muito boa; musical em altas, também lê filosofia, que compreende
Qualidades - Passa despercebido; cozinha excelentes pratos de bacalhau; está sempre disponível para ouvir os outros; e para os ajudar também, dentro das suas possibilidades
Relação com os outros - Introvertido, liberta-se na noite; mesmo quando está mais afastado, os amigos lembram-se dele todas as vezes; neto único de filho único, é adorado pela avó


Criação de Personagem - Síntese

"O ser humano é um animal cheio de malícia e de miséria". Carlos André pensa isto, a caminho da oficina. Lembra-se frequentemente dela, que o deixou sem explicação. Depois lembra-se que tem de comprar areia para o gato. Terá de ser no dia seguinte... Esta noite os amigos estão à espera para irem ver um concerto numa garagem. Ainda bem que vão. Está mesmo a precisar de uma boa moshada. Talvez um dia venha a ter a sua própria banda... Quando poupar um pouco mais, vai comprar um baixo eléctrico. Recebe uma mensagem. Dali por 15 dias há noite livre de jazz, no bar habitual. Talvez seja piano solo...

domingo, 22 de novembro de 2015

Escrita Narrativa na Oficina do Cego - Segunda Sessão

Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Exercícios
Exercício 1 - Criação de Diálogos
Exercício 2 - Dados
Elefante | Mão | Telemóvel | Relógio | Prato com talheres | Nuvem a chover

       O elefante olhou para o céu e viu a nuvem. Era grande como ele e cinzenta também como ele. O elefante percebeu que ia chover e desejou imenso ter um guarda chuva. Mas depois lembrou-se porque não tinha mãos para segurar nele... Só as suas grandes patas com as unhas muito sujas...


         "Quem me dera ter mãos....", pensou o elefante olhando para a nuvem, "Podia desligar o desper4tador e comer o pequeno-almoço com garfo e faca... Podia fazer o nó da gravata e falar de negócios ao telemóvel... Quem me dera ter mãos!"
               
       Subitamente, a nuvem começou a deitar água. As gotas caíram sobre o dorso do elefante, limpando-lhe o pó. Ele apanhou uma gotinha com a tromba e provou-a.

        "Bem, se calhar ter uma tromba é ainda melhor que ter mãos!