quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O Fim do Mundo


Scott Naismith




O Fim do Mundo

                Quanto tempo já passou desde a última vez? Da última vez que aqui estivemos os quatro, desde a última vez que foi o fim? Sim, já se devem ter passado muitos anos. Estive comatosa, um sono profundo em que fingi ser uma pessoa normal, gerações seguidas de gerações a ser uma pessoa normal. Fui a primeira a chegar, a minha cadeira continua exactamente igual. Uma cadeira de plástico verde, com a mesa a condizer ao lado. Este ano esperavam-me algumas litrosas numa caixa cheia de gelo. É sempre preciso um pouco de gasosa para acompanhar as festividades.


                Os outros acabaram por chegar, vindos do portão enferrujado que se abre para nós do lado esquerdo do campo. O campo continua igual, uma grande extensão de erva verdejante que nunca é cortada. Do lado direito, a rede. Uma rede altíssima, que corta as nuvens no céu. Do outro lado? É o precipício. Os outros chegaram e sentaram-se nas suas cadeiras. São tantas vezes a fazer isto que já nem nos cumprimentamos com os dois beijinhos. Só um aceno e chega. Depois começa o fim. Primeiro chegam os nossos amigos desta última vida. Temos de os avaliar e salvar. Desta vez a avaliação é ainda mais simples: grupos de pessoas são enviadas para dentro dos quatro quartos à nossa frente, quartos poliédricos, paralelepípedos sem cor. Só nós podemos ver o interior. Não tem nada. Enfim. Nos quartos, as pessoas têm certo tipo de comportamentos que revelam algo sobre a sua humanidade. Salvamos aqueles que achamos que devem prosseguir, vida após vida, mundo após mundo. Somos os avaliadores do fim. É o fim. O fim do mundo.

                Eu sei bem porque é que me escolheram. Eu estava no primeiro grupo de pessoas, na primeira avaliação. Ainda não havia juízes, como eu e os outros. Sobrámos só nós os quatro e, por isso, ficámos para a posteridade. Já não me lembro bem qual foi o meu teste, o teste original, mas sei que me safei porque me mantive totalmente passiva, sem resposta, encolhida num canto enquanto as outras pessoas se matavam umas às outras. Acho que com os outros três foi a mesma coisa. Vão passando os anos, vão passando os tempos, vivemos e voltamos sempre aqui. Nunca esquecemos o que se passou.

                Os primeiros grupos passam, os nossos amigos. Salvo todos. Vêm os grupos a seguir, elimino todos. Neste fim do mundo o jogo é aborrecido, podemos ver para dentro das caixas e as estações mudam no céu por cima de nós. Tanto está um denso nevoeiro como as folhas da floresta atrás de nós viajam, folhas feitas de vento. Vou bebendo as minhas litrosas e quase que adormeço. Entretanto chegam mais pessoas. Vejo que estas são toda uma turma de adolescentes. Talvez seja interessante.

                Para a caixa que tenho de observar entram cinco raparigas e um rapaz. Atento bem. Eles estão nervosos, quando chega a altura do fim do mundo todos sabem que têm de se destruir uns aos outros ou sobreviver todos juntos. Apenas não estão à espera que seja através deste tipo de jogo mental. Quem inventou estes jogos, quem inventou o fim do mundo? Não sabemos quem é o nosso chefe, não sabemos se é omnipresente ou potente. Ele nunca falou connosco. Ele nunca nos disse se estávamos a fazer bem ou mal. Nunca nos culpou por termos escolhido o Noé, nunca se justificou quando enviou as bolas de fogo nem quando soltou aquela serpente enorme, nem quando mandou o coiote comer toda a gente. Não sabemos quem é, portanto fazemos nós as regras. Tudo depende do jogo, claro. Mas quem decide somos nós, eu e os outros três.

Estas raparigas têm todas cabelos de cores diferentes, são todas gordinhas, são todas feiinhas. O rapaz é alto e tem o rosto cheio de borbulhas e cicatrizes acneicas. Escolha interessante. A caixa fecha-se e apenas eu posso ver o que se passa lá dentro. Recosto-me na minha cadeira de plástico. Para eles, lá dentro, passam-se meses. Para mim não há tempo. O rapaz parece ter uma estratégia. A estratégia dele é ser mais esperto que elas. E a única maneira de ser mais esperto é conquistá-las. Uma a uma, falinhas mansas, elogios à beleza, à estrutura, ao corpo, às mamas. Todas têm cabelos de cores diferentes, mas são todas iguais, não há originais. Ele conquista-as e começa a alimentar-se delas. Percebo o seu plano. Tenciona matá-las a seguir e ser o único dentro da caixa. Só assim poderá ser salvo. A pouco e pouco aproxima-se delas. Não aparentam ter muita personalidade, deixam-se conquistar, deixam-se ser comidas, é tudo muito rápido. Pensam que a única forma de sair da caixa é submeter-se às vontades do macho. Fazem-no, fazem-no repetidamente. E ele beija-as e apalpa-as e fode-as, uma, duas, cinco, de cada vez, de uma só vez, umas em cima das outras, cabelos todos de cores diferentes, pêlos púbicos todos de cores diferentes, será que ele acha mesmo que se vai conseguir safar assim? Será que assim se safa do fim? A caixa está cada vez mais suja.

Já fiz a minha escolha. Uma das paredes da caixa, a que dá para o campo de ervas daninhas, abre-se. Vejo os olhos do rapaz a iluminar-se, um sorriso largo a abrir-se, as borbulhas brilhando. “Consegui! Suas putas, consegui!” Mas eu tenho uma má notícia para ele. Porque deste lado estão os que se salvaram. E eles agarram nas mãos das raparigas, cada unha da sua cor, e levam-nas para perto deles. Elas cospem em cima do rapaz. “Nós deixámos que nos violasses. Nós sabíamos o que ias fazer. Agora, tu vais morrer.”

Na parede do outro lado abre-se uma pequena porta. Do outro lado, uma luz branca ofusca quem olhar para ela. O rapaz começa a chorar, as lágrimas saltando por cima das cabeças das borbulhas, cheias de pus. “Não, não me levem, salvem-me, salvem-me!” Respiro fundo. Estas coisas aborrecem-me. Ordeno a sua saída. Não quero mais vê-lo. Grandes mãos mecânicas agarram-no pelos membros, ele grita e debate-se mas nada as pode parar. Vai para o outro lado, encontrar-se com as pessoas do outro lado. Está lá uma conhecida minha. Uma princesa, Vitória ou Elizabete, já não me lembro bem do nome dela. Está condenada para toda a eternidade a modelar uma raposa de plasticina. A pasta enrola-se nos seus dedos e ela amassa e destrói a raposa, até que tome a forma que deseje. A raposa tem o nariz comprido, mas ela retira-lhe a massa da mandíbula, fica retrognata, coloca a plasticina por cima do focinho e molda-a de forma a ter um grande sorriso. “Mãe, minha mãe!”, reconhece ela, mas logo tem de voltar a amassar a raposa e a procurar outra forma. Mas é sempre uma raposa.

Ainda falta bastante para terminarmos o nosso trabalho aqui. Ainda tenho muitas litrosas e a casa de banho é mesmo aqui ao lado. Vejo as pessoas a chegar do portão, a correrem com medo para a rede e a verem o precipício, a descobrirem que não há saída sem ser jogar o jogo. Afinal, este é o fim. O fim do mundo. O fim deste mundo, pelo menos. É o fim do mundo. Lá na floresta, cigarras cantam.
 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Planeta Cubo

Artistic 4D Cube, Jochi
 
 
 
 
 
 
 
Planeta Cubo
 
Uma dessas noites
Viajei para o Planeta Cubo

É um planeta que se move em quadrados
No espaço
Tem seis lados
Todos iguais
E o mar cai das suas arestas

Vivem muitas pessoas
E muitas coisas
No Planeta Cubo

No mar
Polvos quadrados resolvem
Cubos mágicos
É o seu jogo preferido

E na terra
Pessoas quadradas
Com mentes quadradas
Sentadas em cadeiras quadradas
Com rabos quadrados
Soltam PUNS
Puns cubistas

Sonham as pessoas quadradas
Com sonhos quadrados sobre
Triângulos
Círculos
Pentágonos
Mas no céu todas as nuvens são quadradas
E as gotas da chuva são quadradas também
 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Escrita Narrativa na Oficina do Cego - Quinta Sessão

Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Continuação dos Trabalhos Finais
 
Exercício - Linha do Tempo
 
Linha temporal para a narrativa que estamos a construir.
 
Aniversário (Agosto)
  |  
Adeus Anabela
|
Acordar e Dormir (Semanas)
|
Concerto "Flaming Moth"
|
Encontro com Mike
|
Música

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Aracnídeo

Louise Bourgeois
 
 
 
 
 
Aracnídeo
 
                O estábulo está quente, cheio de vapores de fezes no meio da palha. A luz entra por uma janela no topo e tudo está amarelo, caem os raios de sol, líquidos e cheios de partículas de pó. Afago o cavalo, um pequeno cavalo castanho de extremidades negras, de crina negra, de cauda negra, de olhos negros e com muitas pestanas, que me fixam num pedido de ajuda.

                “Quero escapar”, dizem os olhos do cavalo, a voz muda do cavalo. Tem uma corda ao pescoço, tem correntes nas patas, não se pode deitar, não pode comer o seu feno cheiroso, não pode comunicar com o exterior. Não te posso ajudar, nunca te pude ajudar, tu eras meu amigo e eu tive de partir.

                A seu lado, separados por uma cerca, estão outros animais. Está um pónei muito peludo, que mastiga a sua ração com ar indiferente. E no centro, bem no centro, está uma porca parideira, presa por barras de metal, mordendo as barras enquanto se vê obrigada a amamentar a sua prole, dois leitões muito gordos e muito rosados e um tigre. O tigre é enorme e a sua pelagem cor de laranja com listras aparenta estar molhada, dividida em flocos, como um algodão doce em forma de tigre. Parece-me que ele é inofensivo, mas vejo-o a dilacerar as tetas da porca, enquanto mama, enquanto lhe suga o leite que deveria estar reservado para os verdadeiros filhos.

                Acordo.

                Estou na minha cama, na minha outra cama, F. dorme a meu lado. Ergo-me lentamente, como se emergisse de um sono subterrâneo, os meus olhos pousam na parede. Tremo. Na parede branca e irregular está uma aranha, algo que se parece com uma aranha, um aracnídeo bizarro, demasiado grande para que possa ser real. O seu centro é um polígono feito de café com leite, com uma penugem aveludada. No centro, um círculo todo branco. Como um olho, um olho em que da pupila sai a teia, sai a sua teia, uma teia transparente que me envolve e asfixia, tenho de fugir. As patas do aracnídeo são enormes, são de madeira balsa, articuladas como uma marioneta. São oito. Serão oito? Quatro. Dezasseis. Vinte. Não. São oito. O seu número multiplica-se e divide, quanto mais olho para o bicho maiores parecem as suas patas, são patas horríveis e se me tocarem morrerei, morrerei de nojo, morrerei a gritar, tenho de fugir. F. dorme. Corro para a porta, mas o aracnídeo salta.

                Um enorme salto, um salto em parábola, mas muito lento, muito leve. O bicho pousa suavemente na porta. O olho que está pintado no seu corpo roda, está fixado em mim. Não posso fugir. Da pupila sai a sua teia.

                Tento acordar F. F. dorme. Enrolo-me sob o seu braço, para me proteger do aracnídeo. “O que é aquele bicho?”, pergunto eu em silêncio. As teias das aranhas no candeeiro do tecto tremem com a luz do sol, com o pó da luz do sol.

                “É o cavalo. É o cavalo que se libertou.”
 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Escrita Narrativa na Oficina do Cego - Quarta Sessão

Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Continuação dos Trabalhos Finais
 
 
Criação de Personagem - Personagens Secundários
 
 
Anabela - Personagem "Oculta"
 
  • A ex-namorada
  • Não há explicação sobre o porquê de ter deixado Carlos André. Possivelmente porque não viu evolução familiar na relação .
  • Nunca dizer o nome dela --> "Ela"
  • Cabelo curto e escuro, óculos de massa, calças de ganga e t-shirt. Cheira bem.
  • Não se preocupa com grande coisa.
  • Não tem sentido musical, nos concertos a que iam juntos ficava sempre encostada à parede
  • Mas quando bebe, dança que nem uma louca
  • é sempre verdadeira e adora gatos

Manela e Malaposta - Personagens Terciários
  • Amigos do reino do metal, fazem pandã
  • Mas não têm uma relação, pois Manela é homossexual
  • Saem para os copos e concertos quase todas as semanas com Carlos André
  • Conheceramse os três no mesmo bar, durante uma rusga- Foram os únicos sem nada no grupo em que estavam e ficaram amigos.
  • Estilo pretinho básico, ele é bastante gordo e tem barba. Ambos tez morena.

Mike - Personagem Secundário
  • Amigo deo jazz
  • Nome verdadeiro é Miguel Abrantes
  • Toca saxofone alto, num agrupamento jazzístico chamado "Azul Blue"
  • Conheceram-se por acaso no Bairro Alto: Carlos André fico9u à porta do bar onde ia ver um concerto, porque só na altura descobriu que a banda se chamava "Rats of Doom". Mike ofereceu-lhe um voucher, que andava a distribuir, com uma bebida num pbar de jazz e ele aceitou, porque sempre tinha gostado do estilo.
  • Alto e careca
  • Toca com sentimento
  • Quer incluir Carlos André no seu grupo de amigos, mas este fica demasiado tímido com estranhos
 
Antifa - Personagem Secundário
  • Gato
  • Tigrado
  • Foi encontrado por Carlos André no motor de um carro da oficina onde trabalha, muito pequeno, molhado e assustado
  • Gosta dos pratos de bacalhau em que Carlos André é especialista, que lambe às escondidas quando estão a arrefecer
  • Ração preferida é a de cordeiro com arroz, brinquedo preferido é uma caixa de cartão
  • Castrado
  • Arranha as pernas de uma única cadeira
  • Gosta de se sentar em cima da cara das pessoas quando estão a dormir.




Nota: A partir de agora a história vai ser surpresa, portanto não vou falar mais dela. Vou apenas colocar o que fizemos em cada uma das sessões para irem acompanhando o processo. :)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Escrita Narrativa na Oficina do Cego - Terceira Sessão

Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Exercícios e Início dos Trabalhos Finais

Trabalho para Cabeça - Duas histórias baseadas em fotografias

Primeira História - Álbum
 
 
                A sua primeira fotografia foi ainda no tempo das máquinas analógicas. Foi uma fotografia tirada por acaso, numa festa entre amigos. Ele estava com a sua camisola azul, já cheia de nódoas de vinho e ela com o vestido de alcinhas que tinha levado propositadamente, na eventualidade de encontrar o seu grande amor. Mas na altura, ainda não se conheciam, mostra-o a fotografia. Podemos ver que ele olha para ela concentrado, quase podendo adivinhar o seu desconforto roçando-se contra as calças. E ela tem um esgar de nojo, mas muito mais tarde explicaria sempre que era porque tinha encontrado um caracol na salada.

                Depois dessa fotografia vieram muitas mais. Eles gostavam de tirar fotografias juntos e viajavam muito. O álbum estava cheio delas, mas o casal tinha um acordo: só teriam um álbum para guardar todas as fotografias da sua vida. À medida que os anos iam passando, iam retirando as fotografias menos importantes. Assim, sobravam esta primeira, que os fazia recordar esse momento tão estranho que depois evoluiu para outros, cada vez menos estranhos, cada vez menos extraviados, cada vez mais íntimos. De vez em quando, abriam o álbum e riam-se um do outro, recordando os momentos felizes. Nunca tiravam fotografias de momentos menos bons. A fotografia era uma arte da pura felicidade.

                Depois vieram os telemóveis e as fotografias dos telemóveis. O álbum ficou esquecido dentro da jornaleira, ganhando camadas e camadas de pó, fino ao início mas agora inexplicavelmente espesso. Perderam o hábito de eliminar fotografias e agora tinham todas, todas guardadas dentro do aparelho. Perderam o hábito de as olhar juntos, cada um usava o seu e ria-se de si para si, sem explicar à outra parte a causa da alegria. A vida que era um álbum, passou a ser uma sucessão de fotos. Ele sentia que tinham perdido o significado, mas não lhe disse nada. Achava que se dissesse alguma coisa, deixariam de tirar fotografias de todo. Se não tivesse as fotografias, como a iria recordar?

                Tinha razão. Só através das fotos a iria recordar agora. Sentia-se envelhecido e triste, sentado na estação dos barcos, esperando o Cacilheiro que o iria levar a casa. Depois do funeral, como seria estar na sua casa? Pegou no telemóvel e colocou os óculos sobre as sobrancelhas. Era mais fácil ver ao perto sem óculos. E começou a seleccionar as fotos. Viu-as uma a uma, enquanto esperava pelo barco. E apagava-as, apagava-as repetidamente, como se nunca mais as quisesse ver. Mas o que ele queria era voltar ao álbum, encardido na jornaleira. Essas sim, eram as fotografias importantes.

Segunda História - Prédio Florbela Espanca


                Este é um bairro em que todas as ruas têm nomes de escritores. Costumo sentar-me no vão da escada de um dos prédios da Florbela Espanca. Sento-me aí a beber a minha litra e a fumar os meus cigarros, enquanto espero que os meus amigos cheguem. Depois vamos para o miradouro. Mas há umas semanas comecei a reparar em movimentos estranhos dentro do prédio, aquele prédio Florbela Espanca.

                Eu gosto de animais. Sempre gostei, nunca vou deixar de gostar. Então, quando eles passam por mim, soltos ou à trela, reparo neles. Uma dessas noites, reparei num homem velho, de bigode branco e óculos, vestido com um colete cheio de bolsos. Trazia consigo um caniche pequenino e amarelado da sujidade, que parecia altamente excitado por vir passear à rua. Achei estranho o passeio demorar tão pouco tempo, pois eles voltaram poucos minutos depois.

                Teria ignorado o assunto, se passado uns dias não tivesse visto o mesmo homem, velho, de bigode branco e óculos, desta vez vestido com um polo azul, abrindo a porta para dois outros cães, um cocker e um podengo, ambos castanhos. Tal como o outro, estavam muito excitados. Tal como o outro, o seu passeio foi extremamente curto.

                Como achei estranho, passei a ir para o vão de escada, com a minha litra, todas as noites. E todas as noites saia alguém do prédio, sempre com um cão diferente. Caniches variados, um ou outro rafeiro, até mesmo um pastor alemão. Adultos, velhos, cachorros, saíam cães de todos os tipos de dentro daquele prédio. Podia tirar as minhas conclusões… Aqueles acumuladores de animais, psicopatas, deviam ter a casa cheia de gente e cheia de animais. Pensei em dizer à polícia e fui-me embora para procurar o número. Quando me afastava, ouvi os gritos. Horríveis gritos de cães, ganindo, chorando.

                Estavam a matá-los.

                Teria de resolver o assunto pelas minhas próprias mãos.

                No dia seguinte, pedi a pistola emprestada ao meu irmão, que é polícia. Ele pensou que era apenas para mostrar aos meus amigos e eu não o contrariei. Fui para o prédio Florbela Espanca e aguardei, encostada à porta. Vi uma pessoa a sair. Uma rapariga vestida de cor de rosa, com os cabelos pintados de ruivo. Não trazia cão.

                “Puta, agora substituíste os teus cães por gatos?”

                Aproximei-me por trás dela e toquei-lhe no ombro. Quando ela se virou, encostei-lhe a pistola ao queixo e sussurrei algumas palavras, explicando as consequências dos seus horríveis actos contra animais.

                “Mas eu não tenho animais! Eu sou alérgica!”, repetia ela.

                Tinha os olhos verdes, delineados, muito abertos, muito brilhantes. O seu ar era quase cómico. Era como se ela fingisse estar a morrer. Mas não. Ela estava mesmo a morrer.
 
 
 ESPIGA PINTO - Desenho de Florbela Espanca




Criação de Personagem - Ficha da Personagem

Nome - Carlos
Apelido - André
Alcunha - Carlos

1. Dimensão Psicofísica

Sexo e Idade - Homem; 31 anos (feitos há pouco tempo)
Tamanho e Peso - Alto e Magro
Aparência - Pele clara, cabelo e barba castanhos; olhos claros, variam entre verde e cinzento; orelhas e nariz grandes; cabelo a rarear
Defeitos - Cicatriz na bochecha esquerda, da primeira vez que se barbeou; marcas de acne; mas está tudo tapado pela barba!
Hereditariedade - Saudável
Aspecto - Restos de um estilo de vida industrial, veste preto e botas de biqueira de aço até hoje; um pouco mal cuidado, só toma banho dia sim dia não; tatuado, mas coberto pela roupa (pentagrama invertido no ombro direito; manga tribal no braço esquerdo; cruz celta muito detalhada na barriga da perna direita)
Acessórios - NON

2. Vida Familiar e Social

Classe Social - Remediada
Profissão - Trabalha numa oficina, de segunda a sábado com domingos escalados; sai tarde muitas vezes; salário podia ser melhor, mas adora o seu trabalho
Habilitações académicas - 12º, com curso profissional para a oficina
Ascendentes - Pais separados (Mãe foi para o Brasil quando Carlos tinha 9 anos; Pai está muito tempo afastado, pois é da Marinha); foi criado por Avó, casa dos 70-75 anos
Estado Civil e descendentes - Solteiro; tinha uma namorada que vivia com ele, mas ela acabou tudo; tem um gato (siamês? Tigrado?)
Nacionalidade - Português; pais e avós são do Ribatejo (Almeirim)
Espiritualidade - Experimentou o neo-paganismo e depois o satanismo; hoje em dia identifica-se como agnóstico
Filiações políticas - Aos 18 anos militou pelo Partido Comunista, depois experimentou o anarquismo organizado; agora, vota em branco (mas exerce sempre o seu direito de voto)
Hobbies - Música core e metal; jazz às escondidas; ir a concertos; sair para os copos; colecciona pequenas figuras de gatos
Relevância social - É amigo do seu amigo
 
3. Vida Psicológica

Vida amorosa - Muitas noites bem passadas; mas apenas duas namoradas a sério; gosta de se comprometer emocionalmente; ainda não recuperou do término da última relação
Crenças e Sonhos - As pessoas são más (Malice Mizer); um dia quer vir a ter uma oficina própria; gostava de um dia aprender a tocar baixo e fazer uma banda de grindcore ("Rotten Grapes")
Impedimentos e desilusões - A namorada que acabou tudo; o primeiro gato que teve, que foi atropelado; quando não está na noite pode ser muito tímido
Temperamento - Melancolia; calmo (fora do mosh: liberta lá todas as frustrações, medos e nervosismos)
Atitude - Resignado ao facto de nunca poder evoluir
Complexos - Pavor de ratos e ratazanas (um dia foi à casa de banho e estava uma enorme na sanita)
Inteligência - Numérica não é muito boa; musical em altas, também lê filosofia, que compreende
Qualidades - Passa despercebido; cozinha excelentes pratos de bacalhau; está sempre disponível para ouvir os outros; e para os ajudar também, dentro das suas possibilidades
Relação com os outros - Introvertido, liberta-se na noite; mesmo quando está mais afastado, os amigos lembram-se dele todas as vezes; neto único de filho único, é adorado pela avó


Criação de Personagem - Síntese

"O ser humano é um animal cheio de malícia e de miséria". Carlos André pensa isto, a caminho da oficina. Lembra-se frequentemente dela, que o deixou sem explicação. Depois lembra-se que tem de comprar areia para o gato. Terá de ser no dia seguinte... Esta noite os amigos estão à espera para irem ver um concerto numa garagem. Ainda bem que vão. Está mesmo a precisar de uma boa moshada. Talvez um dia venha a ter a sua própria banda... Quando poupar um pouco mais, vai comprar um baixo eléctrico. Recebe uma mensagem. Dali por 15 dias há noite livre de jazz, no bar habitual. Talvez seja piano solo...