sexta-feira, 18 de março de 2016

A Princesa do Reino de Saskia

One of Alexandra Levasseur's Tormented Women
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Princesa do Reino de Saskia
 

                Não me lembro de ser criança. Procuro nos meandros da minha memória, buscando alguma recordação entre as circunvalações do meu cérebro, mas as minhas lembranças são sempre as mesmas. As festas, os bailes, a minha irmã. As festas, os bailes, mais uma vez a minha irmã. Por vezes, os meus pais. Mas eles não são mesmo os meus pais. Ela não é mesmo a minha irmã mais velha. Mas não me lembro de nada antes disso. Alguma coisa impede a minha memória. Quem seria a minha verdadeira família?

                Sei que durante muito tempo, pensava realmente que o rei e a rainha eram os meus pais. Pensava realmente que eu era uma princesa. A princesa mais nova, nunca uma potencial candidata ao trono enquanto a minha irmã existisse, mas ainda assim uma princesa. A bela e platinada princesa do Reino de Saskia. A irmãzinha da encantadora pretendente do Reino de Saskia. Mas um dia, isso recordo, a minha criada de quarto contou-me que não. Na verdade eu tinha sido adoptada a uma família pobre, camponeses?, comerciantes arruinados?, mendigos?, por um capricho da verdadeira princesa. Desde muito pequena que ela é assim: tudo o que pede lho é dado. E quando ela pediu uma irmã, deram-lhe uma. Escolheram a criança mais loira do reino, para parecer que fazia realmente parte da família. E educaram-na como princesa, para parecer que era mesmo uma. Mas, no fundo, não passava de uma pobre camponesa, arruinada ou mendiga, tomada sob a áurea asa da caridosa família soberana, sob a tutela de uma irmã ideal, aquela que nunca poderia ter tido se se mantivesse na sua origem.

                Mas por vezes penso que seria melhor nunca ter saído de lá. Talvez aí recordasse o que foi ser criança.

                A vida no palácio do Reino de Saskia é um suceder de dias que se repetem, com poucas variações entre eles. Todos os dias devo brincar com a minha irmã mais velha. Já não temos idade para brincar, então o que faço é assistir às suas provas de vestidos. Experimenta dezenas, todos os dias, de todas as cores que a retina humana consegue detectar. Os que gosta serão usados, todos, nos bailes do fim-de-semana. Os que não gosta são queimados, numa grande fogueira no pátio. Gosto de ver a fogueira. Sento-me à janela e vejo o fumo a subir, imaginando que sou eu própria nas chamas, que eu me transformei no fumo e que depois serei uma nuvem. Leve, branca, felpuda, uma nuvem que depois se vai transformar em chuva. Uma nuvem livre, como todas as nuvens. Mas a minha mente foi talhada com o cinzel do dever e eu sei que enquanto a minha irmã mais velha for viva, não poderei deixar de brincar com ela aos vestidos e aos bailes.

                Todos os fins-de-semana temos bailes. Ou festas. Sexta, Sábado, Domingo, entre as dezanove horas e as sete horas do dia seguinte. Sou obrigada a ficar todas essas horas no meio das pessoas que, desinteressadas, fazem passos de dança para alegrar a verdadeira princesa. Muitas pessoas já me disseram em segredo, muitas pessoas contam-me segredos quando a minha irmã está distraída. Ninguém gosta de vir às festas, nem aos bailes, porque são monótonos e aborrecidos. A minha irmã dança com todos os homens presentes e a mais ninguém é permitido dançar. Os meus pais, o rei e a rainha, observam tudo dos seus tronos elevados, bebendo um sumo de uva semelhante a sangue. Sorriem, pois a sua menina está feliz. Mas para todos os outros é um sacrifício. Quem recebe um convite tem de vir. Todos os homens que recebem o convite têm de dançar com a princesa do Reino de Saskia. Mas, segundo dizem, ela dança muito mal e pisa os pés de toda a gente.

                Posso dizer que nunca me passou pela cabeça dançar com alguém. Mas um dia, um novo convidado apareceu e esse, sem saber das regras, convidou-me para dançar. A minha irmã mais velha apareceu por trás dele e gelou-me os movimentos com o seu olhar marítimo. Agarrou-o pelos ombros e começou a dançar com ele, explicando-lhe resumidamente as regras daqueles bailes. Eu fiquei a ver, mas não me esqueci do homem. Parecia ser uma pessoa simples e muito diferente de nós. Os seus cabelos eram negros, quase azuis, os seus olhos eram negros, quase castanhos, a sua pele era branca, quase negra de tanta palidez por cima das veias. Enquanto dançava com a princesa do Reino de Saskia olhava para mim, uma e outra vez. Não, não me poderia esquecer dele. Mas não era competência de uma irmã mais nova fitar o aspecto de um homem. Não. Não era competência dela tentar ver a alma de um homem. Mas sinto que nessa altura ele viu a minha, saindo pelo topo da minha cabeça.

                Uns dias depois, os meus pais chamaram-me à sala do trono. Sentados nos seus assentos, rebuscados entre os detalhes da madeira, disseram-me que eu me ia casar. Como?, perguntei eu. A minha irmã mais velha, depois de falar com o homem da pele pálida, decidiu que eu me ia casar. Ela queria ver uma grande festa de casamento. Por isso, no próximo fim-de-semana, as três noites iam ser em minha honra e eu seria autorizada a dançar. O meu coração parou por um momento, mas logo voltou a bater. Quem seria aquele homem misterioso? Será que eu poderia gostar dele? Eu não sabia gostar de nada, a única coisa que apreciava era o fumo da fogueira. Tinha medo, mas no meio do receio podia ver um pirilampo que me guiava até à liberdade que tanto ansiava. Talvez fosse essa a solução.

                Esperei pelo baile seguinte sem me conseguir ter quieta, nem na cama, nem nas cadeiras, nem à hora do jantar. A minha irmã mais velha impedia-me de comer tudo aquilo que queria, dizendo que eu tinha de estar magra para os vestidos me servirem. Ela escolheu-os, todos vestidos verdes que ela não queria mas que tinha salvo da fogueira para me dar. Com este gesto ela pensava ser a mais caridosa das princesas, enquanto que eu seria apenas uma mísera aproveitadora da sua boa vontade. Não pensei muito nisso. Tudo o que queria era experimentar dançar com aquele homem, o homem da pele pálida.

                Quando chegou o dia, descobri que ele se iria sentar ao meu lado no jantar. Assim poderia falar com ele antes da dança! Ele estava ao meu lado direito, eu ao lado direito da rainha, que estava do lado direito do rei, do lado direito da mais velha das princesas do Reino de Saskia, sentada no centro da mesa, presidindo as hostilidades como sempre. Todos estavam distraídos quando o homem me começou a explicar, muito baixinho, ao ouvido, a verdadeira razão pela qual tinha vindo.

                Ele na verdade fazia-se passar por nobre estrangeiro, quando a realidade era que ele fazia parte de uma célula revolucionária que procurava derrubar a família real do Reino de Saskia. Tudo se iria passar nessa noite, mas ele iria salvar-me, pois todos sabiam que eu não era uma verdadeira princesa. Poderia juntar-me à sua revolução e ajudar a criar um novo governo, um governo sem desperdícios, sem festas, sem raparigas mimadas que tinham tudo o que queriam, até mesmo uma irmã. Depois de me contar isto, os seus lábios finos contorceram-se num sorriso incompleto. Eu podia ver a minha cara reflectida nos seus olhos. A minha cara irradiava uma espécie de esperança, um sentimento completamente novo que eu nunca tinha experimentado. O sentimento de uma potencial liberdade, a perspectiva de me transformar em fumo. Sorri também. Tudo ia correr bem.

                Chegou a hora da dança. O homem pálido perfilou-se ao meu lado; a minha irmã e o pai do outro lado; a rainha mais atrás, no centro. Começámos a dançar os passos do minuete encantatório que simbolizava o início das festas. Eu e o homem, a minha irmã e o pai e a rainha sozinha, fingindo que tinha um par, balançando o seu corpo gorduroso todo enfeitado de brilhantes coloridos. Eu sentia-me envolvida num abraço quente, num amor profundo, como se finalmente tivesse reencontrado a minha família perdida há tanto, tanto tempo… Mas à minha volta sentia os frios olhos da minha irmã, sempre pairando sobre mim como um abutre incorpóreo. No final da dança, ela puxou-me pela mão para trás de uma cortina. Sorrindo, disse

                Já não te vais casar. Não quero.

                Depois levou-me até ao meu quarto e trancou-me lá dentro. Mas eu não me sentia abalada de nenhuma maneira. Porque sabia o que o homem pálido me tinha dito: devia mudar de roupa e esperar no meu quarto com a janela aberta. Ele viria buscar-me. Troquei o vestido por umas calças de ganga e uma camisa, prendi o meu cabelo num rabo-de-cavalo. Cheguei a considerar cortá-lo, mas não tinha uma tesoura no meu quarto. Os objectos cortantes eram sempre levados pelas criadas quando chegava a noite. Só nessa altura percebi que era para me impedirem de alterar o meu corpo de alguma forma, quer com marcas quer com a própria morte. Eles sabiam que eu nunca poderia ser feliz ali. Mas provavelmente sabiam que ia chegar o dia em que eu ia ser nuvem.

                Esse dia chegou. O homem pálido encostou um escadote de metal à janela e disse-me para descer. Depois entrámos no seu jipe, onde outros companheiros o esperavam, e fomos até ao acampamento dos revolucionários. Lá ardiam fogueiras, lá havia famílias vestidas com calças, com cabelos cortados, com animais ao colo. Lá as pessoas tinham olhos verdes, castanhos e negros, como se fossem as nossas criadas. Mas não eram criadas, porque eu agora era parte deles. Sentaram-me junto a uma fogueira e começaram a cantar-me canções sobre a sua luta. Uma delas era a minha história. A menina que tinha sido raptada para ser o bicho de estimação da princesa. Tudo aquilo me divertia. Cheguei mesmo a dançar, abraçada ao homem pálido.

                Subitamente chegou um grande camião com uma jaula na parte de trás. Lá dentro vinha a família real do Reino de Saskia, com os seus fatos de baile esfarrapados, chorando com os olhos vidrados. Para eles, qualquer coisa fora da sua realidade era como viajar para um planeta cheio de monstros carnívoros. Os revolucionários ordenaram-lhes que saíssem do camião e perguntaram-me o que fazer com eles. Disse-lhes para os sentarem ao meu lado. Olhavam para mim como se nada fizesse sentido, como se eu tivesse deixado de ser a mesma pessoa. Talvez tivesse…

                Um deles disse “Trouxemos a comida da festa!” e começaram a dispô-la à nossa frente, ainda nos pratos de porcelana oriental do palácio. Eu estava cheia de fome, portanto peguei nos talheres de prata e comecei a comer de tudo um pouco. A minha irmã mais velha e os outros estavam amarrados e olhavam para mim com um ar incrédulo. Finalmente, cheguei à sobremesa. Era um pudim, um pudim flan enorme. Tirei um pedaço com o garfo e a minha irmã começou a gritar

                Esse é o meu pudim preferido! Não o podes comer! Dá-me! Dá-me!

                Os seus gritos pareciam vir do fundo do seu estômago, cheios de ácido, envolvidos em lágrimas de raiva e sal. Debatia-se, cara toda vermelha, para se libertar das cordas que a amarravam. Rebolou-se sobre si própria, estragando o vestido, sem conseguir respirar por causa do ranho que lhe escorria das narinas, gritando que queria o pudim, que o queria, que não me deixava casar se eu não lho desse.

                Comi uma dentada e atirei o resto para a fogueira à minha frente. Vi o fumo cinzento a desfazer-se na direcção da lua. Ia transformar-se numa nuvem. Eu estava feliz. Pela primeira vez na vida, espreguicei-me sem pedir licença e sorri para o céu.