sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Desafio de Escrita - Um collant no metropolitano

Young Woman Undressing by Jean Francois Armand Felix Bernard 










Desafio de Escrita #11 (não, ainda não foi "decidido")

Tema: Um collant no metropolitano

Data: Ainda não foi "decidido"

300 Palavras
Um collant no metropolitano

                “Vá lá, a mãe já volta”, dizia ela enquanto me dava uma palmada na mão, que eu insistia em manter agarrada à bainha do seu casaco. Com lágrimas nos olhos, eu inspirava e expirava, com muita concentração, a minha cara a ficar toda vermelha e eu pressentindo uma espécie de explosão. Numa loja de roupa dentro do metro, o meu olhar focava-se numa cesta com collants, collants mousse embalados nas suas embalagens rectangulares, ordenados por ordem de tonalidades de pele. Focava-me na diferença entre as tonalidades de collants para evitar o grito que nascia por baixo do meu tórax, a birra que eu achava merecida nesta ocasião.
                A minha mãe tirou um collant da cesta e comparou-o com as suas pernas nuas. “Sabes que a mãe vai a um lugar importante, não sabes, portanto porta-te bem”, dizia ele a aproximar-me junto dele, como se fosse obrigatório eu portar-me bem quando a minha birra se queria soltar e eu já tinha tantas saudades, tantas saudades. Ela tinha prometido, íamos ao Parque dos Índios e afinal não íamos, o que era importante, para que é que ela precisava de collants nas pernas, odeio-vos, odiei-os naquela altura.
                Vi a minha mãe a pagar o collant e de repente já não estávamos na loja, estávamos nas escadas rolantes, a nova estação da Alameda, não me interessava nada a estação da Alameda, eu nunca tinha andado de metro, andar de metro era horrível e não estava nos planos andar de metro. O meu pai deu-lhe um beijo e ela aproximou-se de mim. Recusei-me e aí sim, foi nessa altura que eu comecei a chorar e o grito explodiu em partículas de baba e ranho.
                Ela foi-se embora na mesma.
                Voltou passados, não sei… Seis, sete dias? Mas eu na altura achava que ia ser para sempre.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Desafio de Escrita - Noventa e Nove Camas

"COMING OUT OF THE DARKNESS", Jason and Jamie Burgess
Desafio de Escrita #10
Tema: O cliente da cama nº.99
Data: 31 de Julho
300 Palavras (ultrapassei um bocadinho)
Noventa e Nove Camas
 
                Oiçam, oiçam, a porta abriu-se! A porta abriu-se? A porta abriu-se! Vem aí mais um, vem aí mais um para ao pé de nós!
                Mais um… Mas só há mais uma cama. Vejo ao meu lado que só há mais uma cama. Tu vês? Não, eu daqui não consigo ver. Consegues ouvir-me? Grita! Grita para chegar ao fundo da camarata! Só há mais uma cama! Só há mais uma cama! É a cama noventa e nove, é a cama noventa e nove, já somos noventa e nove!
                Fantástico, noventa e nove. Temos de celebrar! Onde está o da cama um? Cama um? Cama um? Não, eu estou na cama quarenta e dois e para aqui só há silêncio! Eu estou na cama vinte e cinco e para aqui só há silêncio também! Devem estar mortos, o da cama um e o da cama dois. Pois, já chegaram há tanto tempo… Quando eu cheguei já cá estavam! Quando eu cheguei já cá estavam e eu nunca os ouvi falar! O que será que o da cama noventa e nove tem para nos dizer? Como estará o mundo lá fora?
                Alguém se lembra porque é que eu estou aqui?
              Não percebo quem és tu, não te sinto o cheiro. Ah, mas eu às vezes toco na cara do meu vizinho, o da cama setenta e um e conhecemo-nos assim. Nunca há luz, também, que chatice, podiam abrir uma janela…. Não, não. Não! Nem pensar! Não! Nunca acenderam a luz, já nem me lembro o que é a luz, quando eu cheguei já cá estavam os da trinta e oito e da cinquenta e quatro sempre a chorar, a pedir luz, a pedir luz? Calma, tenham calma, eles não vão acender as luzes.
                Estou a ouvir, a porta abriu, a porta abriu! Vem aí o da cama noventa e nove? Vem? Vem! Olá. Olá. Olá. Olá. Não vale a pena dizermos todos olá, ele percebe. Olá.
                Olhem, estão a ver aquilo lá ao fundo? Parece um quadrado! É a porta? A porta? Existe uma porta?
                Não acendam a luz!

domingo, 1 de julho de 2018

Desafio de Escrita - De passo em passo

"Jogos Infantis", Pieter Bruegel









Desafio de Escrita #9
Tema: Quando a terra tremeu
Data: 30 de Junho
300 Palavras


De passo em passo

                De passo em passo, de salto em salto, evito todas as partes brancas da rua. Piso apenas as sombras, as pedras da calçada que são pretas. Alcatrão, piso alcatrão. As pedras brancas, os mármores, as partes que brilham com o sol, nessas não posso pisar. O que acontece se eu acidentalmente lhes tocar?
                De salto em salto, de sombra em sombra, olho para trás e vejo os meus pais, os meus pais que são a luz do sol demasiado brilhante nos meus olhos. Uma tontura devido ao calor, apertar bem os olhos para focar os dois, os meus pais, o barulho de uma cigarra que se levanta do meio das palavras dos outros, dos gritos das outras crianças, das lambidelas em gelados e cães que passeiam.
                De sombra em sombra, de pedra em pedra, o barulho do salto baixo da minha sandália que se quebra nas partes negras, olhar para trás (onde estão os meus pais?) e deixar de ver, a pala do boné da Expo 92 que não faz nada para me proteger do sol, olhar para trás e os meus pais. Desequilibro-me. A minha sandália toca na pedra branca, calçada branca, acabou a brincadeira e o chão quebra-se à minha volta, todas as partes negras se estilhaçam como vidros ou como o gelo escuro dos rios, todo o chão se parte e eu ali, segura na calçada branca enquanto os meus pais estão lá ao fundo, debaixo do sol, afastando-se.
                Acabou-se a brincadeira e a minha mãe vem buscar-me. Choro, choro copiosamente e dói-me o tornozelo porque pousei mal o pé. Uns dias mais tarde, o meu pai foi viver com a Ana.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Desafio de Escrita - Elevador

"Mammon", Collin de Plancy's Dictionnaire Infernal
Desafio de Escrita #8
Tema: Quando sairmos daqui...
Data: 31 de Maio
300 Palavras
Elevador
                Quando sairmos daqui… Quando sairmos daqui? Mas como assim? Minha querida, não minha querida, nem todos vão sair daqui. Boa questão a tua… A verdade é que quando este elevador parar, tu vais sair daqui. Sim, só tu. Eu vou voltar para cima, para o andar das pessoas como tu.

                No andar de cima ficava o teu mundo, estás a ver? Infelizmente, agora estamos numa descida muito íngreme. A partir do momento em que decidiste entrar naquele negócio, tu sabes qual é, foi a partir daí que o meu mestre te condenou. Pois que o meu nome é o do dragão vermelho e o meu mestre é Mammon. Vais ver que vais gostar dele, tal como ele gosta de ti. Também eu fui uma pessoa como tu, a fazer negócios, tira, põe, fica sempre com mais para ti, tudo isso até ao meu acidente. Agora o meu mestre é Mammon e vais ver que vais gostar dele. Vai ser o teu mestre também.

                O que eu faço aqui é levar os fiéis dele para o andar de baixo, depois de lhes acontecerem os acidentes, claro. Pessoas vivas não podem vir para aqui, que horror! Não bastou já quando veio aquele mariconso do Orfeu, com a lira e quês…? Ah, estás a querer saber do acidente? Pois é, estás morta minha querida, morta, enterrada e a caminho do inferno. Acontece a quase todos.

                Afinal, a descer todos os santos ajudam.

domingo, 15 de abril de 2018

Desafio de Escrita - O grito que não era meu

"O Grito", Edward Munch










Desafio de Escrita #7
Tema: A Voz Que Não Era Sua
Data: 30 de Abril
300 Palavras
O grito que não era meu

                São os olhos fechados de quem está a dormir e foi com esses olhos fechados que adormeci. Abrem-se agora e posso observar o súcubo que criou raízes num canto do tecto, as suas mãos largas espraiando-se em sombras e o sorriso carnívoro, muitos dentes triangulares.

                “Vai-te embora, não me vais possuir mais”, é o que digo. O súcubo roda a cabeça e num estampido desaparece. A pressão que havia no quarto começa a desaparecer e, aliviada, preparo-me para adormecer de novo. Espero agora que não haja mais sonhos, esses pesadelos eróticos que me atormentaram durante todos estes anos. Descobri o demónio que me andava a comer os sonhos e os defecava sob a difusa forma de uma égua nocturna, cavalgando por cima de todos os meus terrores.

                No entanto, volto imediatamente a acordar. O meu corpo, o meu corpo! O meu corpo está paralisado! Tento rebolar para fora da cama, tenho a certeza que ainda estou a dormir. Tenho de acordar e, por isso, tento rebolar para fora da cama. Rebolo e caio, mas caio em cima da cama, uma e outra vez, de novo, de novo, esforço-me por abrir os olhos e de repente, qual roupa pendurada num puxador de armário, está lá uma pessoa morta. Uma pessoa morta, pendente, num vestido espectral. Nessa altura consigo gritar mas o grito, quem grita é a morta, a minha voz é a voz da morta e toda a minha garganta é sangue dos arranhões. Luto para me libertar, mas as mãos apertam-me o pescoço e as unhas arranham-me e o sangue afoga-me, não interessa porque a minha voz não é minha, a minha voz está na pessoa pendurada no armário e eu estou morta, eu estou morta, eu estou morta?

                As mãos da minha mãe abanam-me e trazem-me de volta. O mundo real. A pessoa morta era só um vestido pendurado no puxador da porta do armário. E eu sou só eu. Parece que o súcubo ainda não se foi embora.