domingo, 15 de maio de 2016

A Transformação













A Transformação



                Naquela altura, pensava realmente que ia morrer. Quando percebi onde me encontrava, o desespero inicial começou a tomar a forma da constatação de que, realmente, ia morrer. Quando acordei não sabia se era dia, se era noite, a escuridão rodeava-me por todos os lados. Quando me tentei levantar, percebi que não podia. A posição horizontal era a única permitida. Palpei o que me rodeava, para constatar que era madeira. Madeira polida, cheiro a terra.

                Estava numa caixa.

                Gritei, bati-lhe com todas as minhas forças, mas nada me respondia, nada acontecia. E o cheiro a terra, o cheiro a terra tão forte, rodeando-me por todos os lados. Demorei algum tempo, mas depois compreendi: estava enterrado. Tinham-me enterrado vivo.

                Certamente que tinha sido o marido da minha amiga. A minha última memória antes deste universo de escuridão era uma discussão com este homem, que me tinha atacado com um pau. Provavelmente, tinha desmaiado e ele aproveitara-se para me colocar dentro desta caixa, um caixão improvisado, enterrando-me. Como me poderia salvar? Quantos palmos debaixo da terra estaria eu? Será que se gritasse bem alto, alguém viria para me desenterrar? Será que se usasse todos os meus músculos conseguiria romper a barreira que me separava da luz do dia? Tentei tudo isso, tentei, juro que tentei. Mas nada funcionou. E o ar começou a faltar-me, portanto decidi ficar quieto e aguardar a morte. Ela iria chegar. Brevemente? Seria brevemente? Ali em baixo não havia tempo. Apenas escuridão.

                Depois, vieram as formigas. Sentia as suas picadas por todo o corpo, comiam-me vivo. Estaria eu ainda vivo? Contorcia-me no pouco espaço que me tinha sido atribuído, cerrava bem os dentes para que elas não me entrassem na boca. Mas comeram a minha pele, mastigaram a minha carne, levaram pedaços de mim para a grande rainha instalada nos seus túneis.

                Depois vieram os vermes. Eu não os podia ver, mas sentia-os alimentando-se do meu abdómen. Podia perceber como se movimentavam, mas deixei-me estar parado. A posição que encontrei era a mais confortável possível. Deitado, braços ao lado do corpo. Depois, quando tentei levantar um braço para afastar os vermes, percebi que já não me podia mexer. Podia fechar a mão e sabia que algo estava nela. Algo sólido, duro, redondo. Uma semente. Por isso, deixei-me estar e pensei “que sirva o meu corpo para alimentar esta semente”. Afinal, já estava morto de qualquer forma. Nunca ninguém me iria buscar. Mesmo que viessem, encontrariam apenas um pedaço de carne roído pelos insectos.

                Os bichos tinham comido as minhas pálpebras e nunca mais poderia fechar os olhos. A dor era indizível, o sofrimento não cessava por um instante. Mas eu sabia que já tinha morrido e que, portanto, tudo iria acabar mais cedo ou mais tarde. O meu corpo serviria para a semente. Passei a amar aquela semente e, enquanto tive forças, sussurrava-lhe belas palavras. “Vais ser uma grande árvore, amiga”, “Vais sair daqui um dia destes”, “Vais poder ver a luz, eu nunca mais vou ver a luz.”

                Depois calei-me e não sei quanto tempo passou.

                Mas quando dei por mim, podia respirar de novo. De uma forma diferente, mas era algo como respirar. O ar rodeava-me e a luz do sol inundava tudo à minha volta. Estava cá fora? Acima da terra? Como poderia ter acontecido isto? Tentei observar o que me rodeava, mas via tudo de forma diferente. Não olhava para baixo nem para cima. Porque não tinha olhos, tinha deixado de ter olhos, com pálpebras ou pestanas. Não sentia mais o cheiro da terra. Mas podia sentir a terra debaixo de mim, tão confortável como o útero materno. Foi só depois de várias noites que compreendi que a semente tinha crescido e brotado da terra. E que, de alguma forma, a minha alma humana, a minha compreensão pessoal, tinha sido transferida para este novo corpo. Agora, eu era uma planta.

                Mais uma vez, desesperei. Estava vivo, estava livre da terra, mas não me podia mexer, não podia encontrar o marido da minha amiga para me vingar, não podia encontrar a minha amiga para a beijar, não podia ver, nem cheirar, nem comer, nem andar, nem ouvir, nem estalar os dedos dos pés. O meu corpo estava morto e sem o meu corpo não podia fazer nada. “Porque não me mataste, deus, em vez de me transformares nesta criatura obsoleta?”, perguntava.

                Mas o tempo passou e eu compreendi que ser árvore é um estado quase tão bom como ser homem. Passei a apreciar muitas outras coisas que nunca havia notado antes. Para começar, tudo o que eu precisava de fazer era alimentar-me e crescer. Alimentava-me da terra, da água, do sol. Passei a apreciar os longos dias de Verão da mesma forma que apreciava as grandes tempestades com suas trombas de água. Não havia mais tempo, apenas as estações que mudavam. Podia sentir a dor quando o vento me arrancava folhas, mas podia também dar-me ao luxo de não me importar. Porque tudo o que eu precisava de fazer era crescer. Não podia falar, mas tinha uma vontade própria que me fazia tentar comunicar com o mundo em redor. O vento ajudava-me, os pássaros ajudavam-me, as abelhas ajudavam-me. Vinham alimentar-se das minhas flores e dos meus frutos e assim levavam as minhas mensagens. Para quem? Não sei. Talvez outras árvores. Não havia mais nenhuma à minha volta que me fizesse companhia.

                Descobri a linguagem das plantas, conversando com a relva e com as florzinhas térreas junto ao meu tronco. Podia falar com o musgo e com os líquenes que se alimentavam da minha casca. As nossas conversas eram muito diferentes das que um homem teria com outro homem, ou com uma mulher, ou com qualquer criatura animada. Porque falávamos sobre como poderíamos crescer cada vez mais, ser mais fortes, libertar mais oxigénio, ser mais verdes. Falávamos sobre as nossas chuvadas preferidas e recordávamos os mais belos dias de sol, que tinham sempre brisas agradáveis. Falávamos daquelas vezes em que uma abelha se alimentou das nossas flores.

                Sendo uma árvore, nunca havia momentos tristes ou menos bons. Todos os momentos eram iguais, porque me alimentava do que me rodeava e tudo era agradável. Comecei a esquecer do que tinha sido a minha vida enquanto homem. E quanto menos me recordava do passado e de todo o sofrimento, mais as minhas raízes se expandiam e eu crescia, obedecendo ao desígnio oferecido a todas as plantas.

                Era feliz. Não há nenhuma árvore que não seja feliz.

                Neste novo corpo, também não conseguia perceber o tempo da mesma forma que os homens. Os dias, os meses, os anos, não era necessário conta-los. Sabia que a estação ia mudar pelas ligeiras diferenças na humidade, na temperatura, na luz. Como eu me havia tornado numa árvore de folha permanente, não havia muitas diferenças para mim entre o Inverno e a Primavera. Pássaros traziam mensagens de outras árvores, bem longe, cujas folhas caíam todas quando a temperatura descia. Eu calculava que fosse doloroso, mas compreendia também que para uma árvore todas essas coisas são apenas uma transformação e o sinal de que estamos a fazer tudo bem, para crescer, para não murchar, para não morrer.

                Por isso, não sei quanto tempo passou desde que eu havia sido enterrado vivo e o momento em que voltei a ver pessoas. Uma tarde, senti algo rasgando a minha casca, uma dor aguda que me recordou a vez em que havia sido consumido pelas formigas. Procurei saber o que se tinha passado. Era um casal de pessoas, um rapaz e uma rapariga, humanos, que escreviam as suas iniciais no meu tronco. Apesar da dor, senti-me bem. Afinal, eles tinham-me escolhido para simbolizarem o seu amor. Eu já não recordava bem o que era o amor, mas sabia que era uma coisa boa.

                No entanto, há tanto tempo que não via pessoas que quis saber como eram. Portanto, procurei vê-las. As árvores não têm olhos, mas é como se um desses órgãos existisse em cada ramo, em cada folha, em cada broto. Podemos ver tudo o que nos rodeia, apenas não nos interessa. Naquele dia, interessava-me ver as pessoas, portanto deixei cair uma das minhas folhas mais velhas à sua frente. E quando a folha passou, vi as suas caras. Recordações assolaram-me e fiquei espantado. A rapariga tinha os olhos do homem que me havia enterrado vivo. E o nariz da sua mulher. Aquela que havia sido minha amiga. Mas ela era mais velha do que eles algum dia haviam sido. Quanto tempo tinha passado? Dez anos? Cem? Duzentos? Aquela era, provavelmente, a descendente do homem que me tinha feito tanto mal.

                Por momentos pensei que finalmente poderia concretizar a minha vingança. Como me poderia vingar, enquanto árvore? Deixar cair um dos meus pesados ramos em cima da cabeça destes jovens, para que o seu sangue alimentasse as papoilas que cresciam debaixo da minha sombra? Mas veio uma brisa que trouxe pólens variados, de terras longínquas, e esqueci-me de tudo, mais uma vez. Afinal, de que serviria tirar a vida a uma pessoa que nada me tinha feito, sem ser um rasgão na minha casca? Tal como eu estava vivo, tal como eu tinha a bênção de ainda poder respirar e crescer, devia deixá-los respirar e crescer, para que um dia voltassem para debaixo da minha sombra e fossem, mais uma vez, felizes.

                Eles foram-se e os tempos continuaram a movimentar-se, sem que eu desse por eles. À minha volta fizeram construções. Colocaram bancos e brinquedos para as crianças. Escorregas, baloiços, essas coisas. Puseram uma vedação delimitando o espaço à minha volta, destruindo alguma da relva no processo. Mais tarde, apareceu uma criança muito pequena com os olhos do homem que me tinha enterrado vivo. Filho daquela rapariga que tinha escrito na minha casca?

                Nada mais interessava. Nada mais interessa. Tenho de me esquecer do que foi ser homem. Porque agora sou uma planta. Deixará de haver passado, tal como não há mais presente e nunca houve futuro. Farei como todas as outras plantas e crescerei, aproveitando o sol e a água, a terra e as abelhas.

                Eu sou uma árvore num jardim. A árvore que está no teu jardim. Estou sempre parada, é verdade. Mas sou feliz assim.