quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Love Hotel

Ace Drawing
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Love Hotel
 
  
                “Vamos ao Love Hotel, vai ser giro!”, disseram eles.

                A verdade é que fomos mesmo. O Love Hotel tinha aberto há poucos meses e era a nova atracção da cidade. Inspirado pelos seus congéneres japoneses, oferecia algo nunca visto neste local. Um hotel de quartos temáticos, onde casais e outras pessoas (quem quisesse, na verdade) poderiam ter uma noite divertida com várias actividades… Sim, essas actividades. No nosso caso, iríamos apenas para beber tudo o que viesse incluído no preço e experimentar dormir numa cama rotativa. Por isso, fomos mesmo.

                Quando chegámos, foi-nos atribuído a chave do quarto número IV por uma máquina automática. Um número aleatório para um número de pessoas aleatória, desejosas de fazer todo o tipo de coisas alienadas que o local tinha para oferecer. Subimos uma imensa escada rodeada por papel de parede amarelo com um padrão de losangos mais claros e chegámos a um patamar com dois corredores.

                “Casados”, anunciava um painel no da direita.

                “Solteiros”, anunciava um painel no da esquerda.

                Rindo muito, achámos que o nosso corredor seria o da esquerda. Começando a avançar em busca do nosso quarto, ainda rodeados pelo tal papel de parede foleiro, descobrimos que a porta número IV era a primeira. Por isso, colocámos a chave, pendurada num porta-chaves quadrangular, paralelepípedo branco. Entrámos. Lá dentro, ainda o mesmo papel de parede.

                Depois, não recordo bem o que se passou. O quarto não tinha janelas e deixara de ter porta. Não tinha nem um móvel. Começou a descer como um elevador e a próxima coisa que sei é que estávamos num lugar novo.

                Ao início foi difícil de nos habituarmos. Mas agora estamos tão bem integrados que já mal falamos uns com os outros. Fizemos novos amigos e acho que os outros nem se lembram bem do lugar de onde viemos. Na verdade, acho que ninguém se lembra bem do lugar de onde veio, porque nenhuma das pessoas que aqui vive nasceu neste sítio. Quando questionados de onde vieram, todos referem alguma coisa sobre o Love Hotel. Mas parece que já não interessa muito a ninguém. Todas as pessoas trabalham com um minério estranho que vem da montanha próxima, uma espécie de lápis lazúli que se apresenta em calhaus perfeitamente redondos. Compram-no, vendem-no, trocam-no por comida. Mas ainda não descobri para que serve exactamente.

                Para além destas pessoas, há os homens-pássaro. Eles vivem no topo da montanha e podemos vê-los a voar sobre a cidade. São homens com asas em vez de braços, garras em vez de pés, bicos em vez de bocas. Os olhos são humanos e podemos distinguir os géneros porque as mulher-pássaro têm seios, também eles cobertos por penas coloridas. Há homens-pássaro de várias cores… Amarelos, azuis, vermelhos… Às vezes pousam, mas não devemos tentar comunicar com eles, pois são agressivos. Nos primeiros tempos tentei falar com um deles, uma mulher, mas o grito com que me respondeu ensurdeceu-me e aterrorizou-me. Podia ver o seu grito no fundo da garganta, como um vómito branco, pastoso, grumoso, redemoinhando em direcção à glote muito laranja, tremendo de emoção. Nunca mais falei com estas criaturas.

                Ninguém parece dar-lhes muita atenção, de qualquer forma. Excepto quando atacam um transeunte qualquer e o levam pelos ombros para os seus ninhos, onde certamente o comerão vivo.

                Passou algum tempo e o meu cabelo ficou azul, como as pedras que fazem movimentar a vida nesta cidade. O vestido que trazia cortava-me a circulação dos braços e por isso arranjei roupas novas. Aqui, andam todos vestidos com longas túnicas brancas e faixas à volta do pescoço, de várias cores… Amarelas, azuis, vermelhas… Por mim, consegui arranjar uns calções e uma t-shirt de alças. Sinto-me completamente diferente do que era antes de ir para o Love Hotel e ter vindo aqui parar.

                Houve uma vez que consegui voltar. Estava no quarto do papel de parede dos losangos outra vez. Mas tinha-me esquecido de alguma coisa na minha nova casa e voltei para trás. Quantas vezes me arrependo…

                Mas agora passa-se algo extraordinário. Vim com algumas amigas do passado, aquelas que tinham vindo comigo para este sítio, para uma oficina. Viemos para partir algumas pedras azuis em pedras azuis um pouco menores e estávamos nesta actividade quando eu encontrei, escondido debaixo de um pano muito sujo, um velho teclado polifónico da Casio. Recordei que, na altura, não sabia tocar piano. Mas que gostava de tentar. Então tentei. Comecei a tocar uma música conhecida e todas as minhas amigas começaram a rir. Ia parar, porque estava a tocar muito mal e tinha vergonha, mas olhei para o tecto e vi algo que reconheci. Era um pequeno paralelepípedo branco.

                “A chave! A chave para voltarmos para casa!”

                Elas olharam para cima e perceberam tudo. Começaram a subir para cima das mesas para tentar apanhar o objecto, mas ele voltava a integrar-se no tecto.

                “Toca mais, toca!”

                “Mas eu não sei tocar!”

                “Faz barulho, qualquer barulho, toca uma merda qualquer!”

                Então eu fiz barulho. Mexi nos botões todos, para fazer as teclas soarem como flautas, violinos ou vibrafones. Toquei com os cotovelos. Comecei a cantar. Gritei, também. E o paralelepípedo começou a cair e, com ele, todo o tecto começou a desfazer-se, qual serpente quadrilátera, composta de centenas de poliedros.

                As minhas amigas apressavam-se para apanhar tudo aquilo.

“São todas chaves! São todas chaves, podemos todos sair daqui! Todas as pessoas podem voltar para casa!”

Parei e pus a mão no bolso. Senti uma forma, já bem conhecida. Eu tinha a chave. E eu sabia como a usar, já que era a única que tinha conseguido sair antes.

“Tens de nos ensinar a usar as chaves!”

Podia ouvi-las à minha volta, mas corri para a rua. Corri pela rua. Corri através da rua. Eu ia usar a minha chave antes de todo. Estava ansiosa por voltar. Estava ansiosa por todas as coisas que ia poder fazer no Love Hotel.

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