quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Tózé do Avião

Leonardo Santamaria




Tózé do Avião


Para aqueles que fizeram o favor de me transportar

                O sonho começou quando os meus pais me levaram a ver uma parada militar. Teria, não sei, uns cinco, seis anos. Estava um céu sem nuvens, muito azul, cheio de sol, eu levava um chapéu vermelho com elástico ao pescoço e a minha mãe levava marmita e um vestido às flores. Lenço na cabeça. Era uma grande festa e o sonho começou quando vi os aviões. Potentes máquinas rodopiando num ruído ensurdecedor, aves mecânicas em total liberdade sob o jugo humano. Soube desde esse momento que o meu destino estava ali. O meu destino era pilotar um avião.

                Quis o destino que, por volta dos oito anos, o médico me prescrevesse uns óculos de lentes grossíssimas. Miopia, disseram. Já nessa altura eu sabia que um piloto de aviões teria de ter uma visão perfeita, mas não chorei quando me colocaram os óculos novos em folha em cima do nariz. Eu tinha a certeza que a fada do destino não me iria impedir de cumprir o meu sonho. E assim vivi a minha infância e primeiros anos da juventude. Estudava muito sobre aviação, mas nada muito técnico. Nunca tive jeito para os números. E um rapaz como eu, dotado de coragem e perseverança, não estava fadado para os meandros da engenharia. Eu soube desde logo que teria um papel como herói da aviação. Mas os óculos…

                Foi quando fiz dezoito anos e o meu pai me inscreveu numa escola de condução que percebi que o destino por vezes aparece oculto e por metáforas. No início, apliquei-me com moderação no estudo do código da estrada. Não percebia, continuo sem perceber, a utilidade de tantas regras e símbolos estranhos. Aliás, fiz o exame teórico com recurso a uma pequena cábula, que entretanto se perdeu quando mudei de casa. Mas quando me dirigi para ter a primeira aula de condução percebi tudo. Olhei para o automóvel que me era destinado, um velho Ford, e reparei que ele brilhava, fulgurante, ao sol, tal qual os aviões da minha infância. Era isso. Aquele era o meu avião.

                Assim que me sentei por trás do volante, senti de imediato uma força intrínseca nascendo no meu baixo-ventre. Testei a manete das mudanças. Testei os pedais. Liguei o carro ainda antes do instrutor entrar nele. Deixei o motor ir abaixo, mas o instrutor congratulou-me. Era exactamente assim que deveriam começar as minhas aventuras automobilísticas. Logo na primeira aula percebi que o meu verdadeiro prazer encontrava-se na estrada, na condução, na liberdade oferecida por esta máquina terrestre, em tudo semelhante aos pássaros metálicos que sobrevoavam a minha imaginação. O instrutor sempre me deu mostras de estar muito agradado com as minhas habilidades. Dizia “Tózé, você ainda vai ser um ás do volante!”. Eu acelerava nas descidas, ignorando tudo o que estava no meu caminho. Afinal, de que serve um sinal de cedência de passagem quando o Tózé está a passar no seu poderoso avião? Dentro de um carro sou livre. Ninguém pode impedir um homem de ser livre.

                No entanto, o avaliador do exame de condução insistia em não me aprovar. Em todos os oito exames que executei, fiz brilhantes manobras, ultrapassagens em rotundas, mudanças de sentido em faixas de sentido único (muito apertadas, diga-se), cheguei mesmo a encostar, propositadamente, claro, o espelho lateral a uma bicicleta que me revoltava, por andar demasiado devagar e no passeio. Mas havia algo que me impedia de aprovar no exame: o homem do carocha azul. Sempre que eu chegava à larga estrada com traço contínuo em que deveria finalizar o exame, um carocha azul insistia em sair de um parque de estacionamento e colocar-se à minha frente, perturbando o meu ritmo condutor altamente especializado, que tinha vindo a desenvolver às escondidas no carro do meu pai. Então, no oitavo exame, tomei uma decisão. Quando o carocha se colocou à minha frente, decidi que aquela seria a oitava e última vez! Acelerei e bati-lhe por trás, desfazendo o seu frágil para choques. Quando o homem saiu do carro, em espanto, eu também saí. “Mas o que aconteceu?”, perguntou, mas como resposta dei-lhe um banano nas faces que o deixou atazanado. “Aprenda a conduzir, seu merdas!”, gritei-lhe. Voltei para o meu carro e, com toda a confiança, acelerei, deixando o pedante do carocha azul chorando perto do seu miserável carrinho.

                Evidentemente que fui imediatamente aprovado com distinção. “A sua atitude demonstrou a fibra de um verdadeiro condutor!”, exclamou o examinador. “Eu sabia que você se ia tornar um verdadeiro ás!”, falou o instrutor, inchado de orgulho. E, com a nova carta de condução nas mãos, fui para casa. Confesso que nesse dia os meus óculos se embaciaram. A minha felicidade era tal, que devo ter vertido uma pequena lágrima.

                A partir desse momento, todo um novo mundo se abriu para mim. Tinha acabado a escola, nada tinha que soubesse fazer, mas sabia que dentro do universo automobilístico me poderia distinguir. Assim, pedi um empréstimo ao meu pai e comprei um táxi. Nesse momento começaram as mais distintas aventuras, das quais me recordo com nostalgia e um grande orgulho.

                Para começar, precisava de uma farda apropriada a um taxista do meu nível. Deixei crescer o bigode, que até hoje acaricio com mesuras, com recurso a um pente para os piolhos, e comprei uma boina de napa castanha. Depois, comprei umas belíssimas luvas de cabedal curtido, sem as pontas dos dedos, tal qual um verdadeiro aviador. Estava então pronto para conduzir o meu poderoso avião, um grande e poderoso Mercedes em segunda mão, que trepidava com valentia ao passar em cima de buracos e valas e tinha estofos em pele com muitos rasgões cheios de personalidade. Decidi decorar o meu avião com requinte. Arranjei um forro para o assento feito de pequenas contas de madeira e pendurei um crucifixo de ouro puro, oferecido pela minha querida mãe (seja-lhe leve a terra), no espelho retrovisor. Como o sol ardente da manhã pode perturbar até o mais talentoso aviador, arranjei também umas palas escuras para colocar por cima dos meus óculos. Tenho de admitir que, ao início (e ainda hoje!), eu era o taxista mais charmoso de toda Lisboa. Até sei que havia moças que recusavam os meus colegas para poderem ser transportadas por mim até ao seu destino. E como eu gostava das moças!

                As moças… Ficava (ainda fico!) sempre feliz por apanhar uma no meu assento traseiro, com as suas nádegas mal cobertas pelas saias curtas tocando nos meus estofos e o seu ar inocente quando colocam o cinto de segurança. Mal sabem elas que não é preciso colocar o cinto de segurança com o Tózé. Dentro do avião do Tózé, fazemos viagens até ao infinito. É dos maiores prazeres da vida, acelerar na Avenida da Liberdade, passando todos os sinais vermelhos, e olhar pelo espelho retrovisor para ver os seus olhinhos lacrimejando assustados. É prazer maior quando desconheço o caminho e as levo para uma volta em Monsanto, à noite, com chuva, e lhes pergunto se se sentem bem, se querem que pare o avião para poderem tomar ar. Ah, os seus olhinhos! Que belos olhinhos têm as moças que andam no meu táxi!

                Mas houve uma moça que me perturbou. Infelizmente, nunca me calhou atropelar uma pessoa na passadeira, ainda estou desenvolvendo esse talento, mas houve um dia que foi quase. Estava eu em Algés, furando caminho através de irritantes condutores que não sabiam para onde iam, quando me vejo perante uma passadeira. À minha frente estava uma rapariga, toda vestida de castanho, olhando fixamente para mim. Enganei-me e travei a fundo em vez de acelerar. Ela olhava para mim, parada na passadeira, no topo das suas botas de camurça como uma corça paralisada pelos faróis do táxi. Os seus olhos eram profundamente castanhos, como a casca de uma árvore, os lábios brilhantes esboçavam uma palavra de agradecimento. Quase me apaixonei nesse momento. Mas fiz o que tinha de fazer. Apitei e gritei “não tás a ver a estrada ó minha atrasada mental?” Avancei com o carro para lhe tocar, mas ela já lá não estava. Lembro-me frequentemente desse momento quando vejo pessoas a atravessar quando têm o sinal verde para elas. Se elas me vêem a andar, para que hão-de atravessar? Não compreendem que o avião tem sempre prioridade?

                Só há uma ocasião em que admiti a minha derrota, nessas questões da prioridade. Estava ali na zona do Cais do Sodré, movimentando-me para o primeiro lugar da fila da praça de táxis, lugar que todos os meus colegas sabem que me compete por direito adquirido, devido ao meu fabuloso talento como piloto. Mas, ao mesmo tempo que eu, avançou um pesado autocarro da Carris, o número 758. Fui obrigado a travar a fundo, coisa que me enfureceu. Estava eu a sair do táxi com o meu bastão, quando o condutor do autocarro parou e sorriu para mim. Estendeu a mão. Estava a ceder-me a passagem. E dessa vez, senti-me derrotado. Nunca mais voltou a acontecer.

Isto recorda-me que ainda não falei do meu companheiro de viagem. Arranjei-o logo ao início da minha carreira, quando me vi uma vez envolvido numa escaramuça com uns rapazes novos e tive de fugir por eles terem uma faca de cozinha. Quando isso aconteceu, decidi armar-me também. Fui a uma loja de desporto e escolhi o taco de baseball mais pesado que estava disponível. Depois, em casa, fiz-lhe algumas alterações para ficar mais apropriado ao piloto de categoria que eu sou. Preguei-lhe alguns pregos na ponta mais larga e pintei o outro lado de castanho escuro, a combinar com as minhas luvas que sempre me acompanham. Depois, com a minha melhor caligrafia cursiva, escrevi o nome dele na lateral. O nome do meu bastão é Dobermann. Como essa raça de cães, tem um faro apurado e nunca falha o seu alvo, sendo altamente destrutivo e já tendo cumprido o seu papel na resolução de problemas diversos, de maior e menor escala.

Por exemplo, foi ele que me deu toda a razão no caso do tuk-tuk. Eu estava na Mouraria a forçar o meu motor a fazer um grande ruído, de forma a fazer as velhotas vir à janela mandar-me calar, uma pequena partida que gosto de fazer porque mostra o meu primoroso controlo sobre o pedal da embraiagem. E, de lá do fundo, veio um tuk-tuk. Essa maquineta horrível, miserável triciclo que não se pode considerar sequer parente do mais fraco automóvel, muito menos de um avião como o meu, veio na minha direcção e desviou-se para poder passar. Mal ele sabia que pelo Tózé ninguém passa.

Quando passou do meu lado esquerdo, abri a porta com toda a força, o que fez com que o farol da pequena máquina se desfizesse em pedaços cortantes. “Porque fez isso?”, berrou o infeliz que manietava o objecto. Senti-o magoado… E isso ofendeu-me. Porque eu fiz o que estava correcto, eu impedi-me de ser humilhado por aquela trotinete motorizada. A ofensa causou-me tanta raiva que, com toda a calma, fui buscar o Dobermann. Bati com ele no chão e, ao ver os pregos, a criança de barba que dirigia aquele simulador pediu “calma, tenha calma, está tudo bem, tenha calma!”

Eu estava calmo.

Coloquei o corpo dentro do porta-bagagens, não sem esconder um certo orgulho por estar a transportar o meu primeiro cadáver. Fui buscar o meu cabo de reboque, que está sempre à mão para o caso de ser preciso recusá-lo a alguém, e levei comigo o tuk-tuk. Acelerei e senti a pequena máquina a perder peças ao longo do caminho. Sempre que ouvia uma parte a cair, ria-me a bandeiras despregadas. Porque realmente tinha graça. Quando cheguei a Santa Apolónia, atirei o corpo ao rio e despejei alguma gasolina (tenho sempre alguma de reserva para estas ocasiões) em cima do tuk-tuk que, incitado por um fósforo, pegou logo fogo, como uma pequena estrela de vingança.

Acho que nunca dormi tão bem como nessa noite.

Claro que no dia seguinte já tinham encontrado o corpo e várias testemunhas me tinham identificado. A polícia veio à minha casa e eu recebi-os sentado no maple, com o Dobermann no colo, bebendo de uma caixa de vinho do Lidl.

“O senhor é o senhor António José?”

            "Tózé.”

            “Caro Senhor Tózé, viemos apenas dar nota de que encontramos o seu cadáver e de que o seu acto foi muito bem executado. Como compete a um verdadeiro taxista desta cidade de Lisboa! Deixe-me apertar-lhe a mão!”

            Não me dignei a isso. Um polícia pode ter um carro com cores berrantes, mas nada é comparado ao meu veículo.

           Agora estou aqui, escrevendo estas linhas, pois temo que o meu tempo se aproxime do fim. Afinal, vidas felizes e cheias de momentos alegres como a minha, têm tendência a durar pouco tempo. Um herói deve morrer jovem. Hoje vou fazer as corridas da noite. Talvez seja uma das minhas últimas noites. Olho-me ao espelho. O meu bigode está branco e os meus óculos a cada ano que passa ficam mais grossos. Mas eu sei que esta noite vou apanhar uma moça. Uma moça bonita, de cabelos compridos e encaracolados, com um cheiroso perfume e pernas musculadas adornadas com um salto altíssimo. Não, não vai ser uma estrangeira. Essas não têm graça. Vai ser Portuguesa. E quando ela me disser o seu destino, vou manter uma cara séria. Vou ajustar as minhas luvas. Colocarei a primeira mudança. E vai começar a viagem. Porque eu sou o Tózé. O Tózé do Avião.

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