quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Cortes de Papel

Patryk Mogilnicki





Cortes de Papel


                Aqui me encontro prisioneira. Sei que estou inocente, o meu único crime foi não saber o caminho. Perdi-me nos corredores do castelo, procurando o salão de baile, corri no meu vestido branco de cetim, batendo portas umas atrás das outras, descendo escadas, rectas, espiraladas, todo o tipo de escadas. Vim parar a esta sala e agora sou prisioneira.

                O castelo está na colina sobre a praia e muitos dos seus níveis estão submersos na água do mar. Sei disto porque esta sala está rodeada de pequenos corredores fechados por grossos vidros, janelas que me mostram que estão cheios de água. A sala é vermelha, paredes vermelhas, tecto vermelho, tapeçarias vermelhas com grandes e complexos ornamentos dourados que brilham, com forma de pássaros, de insectos, todo um ecossistema prisioneiro de grossos tecidos macios. Não há uma mesa, nem uma cadeira, não há sítio nenhum onde me possa sentar nesta sala circular. Olho pelos vidros, têm água do outro lado, mesmo que lhes bata, mesmo que os parta, não tenho saída. Aguardo. Sinto que deveria ter algum tipo de desespero em mim, mas estou extremamente calma. Oiço vozes algures, vozes de fantasmas. Às vezes posso vê-los, os fantasmas de todas as pessoas que ficaram presas nesta sala enquanto procuravam pelo salão de baile. Estão a fazer uma festa. Não tenho onde me encostar, sinto os joelhos a ceder e um sono profundo invade-me. Aqui morrerei, mas não me sinto infeliz.

                Subitamente vejo uma figura do outro lado de um dos vidros. Os vidros têm uma forma perfeitamente quadrilátera e aquele enquadra a pessoa. É um homem vestido com um longo casaco de veludo vermelho, com decorações douradas iguais às do quarto. Faz-me um sinal, mas eu estou quase a adormecer, levanto os olhos para ele mas mal o consigo distinguir, em breve serei também um fantasma. Mas ele estende o braço na minha direcção, apontando com o dedo indicador o vidro que nos separa. Do outro lado a água agita-se numa corrente de bolhas e gases. A água está cada vez mais agitada mas eu sinto-me a cair, os meus olhos a fecharem, só tenho tempo de ver o que aí vem antes de cair. São hipopótamos, três hipopótamos muito pequenos, infantis, que nadam a toda a velocidade e batem contra o vidro. Parte-se, a água jorra, a água inunda a sala, sinto-me a cair mas o homem agarra-me.

                As suas mãos são grandes e cheias de veias.

                Ele leva-me pela mão, descendo escadarias cheias de olhos misteriosos, rubros e curiosos. Oiço os fantasmas, falam numa língua antiga, uma língua que está para além da minha compreensão. Caio muitas vezes, mas o homem levanta-me. Lá ao fundo uma porta.

                Ar fresco da noite. Estamos na praia.

                Ele larga-me e eu avanço lentamente para o mar. Sinto que no mar poderei estar em paz, que não terei mais de ir ao salão de baile, que ninguém se importará com a bainha rasgada do meu vestido nem com as nódoas de terra no corpete. Estou quase a chegar, mas ele está cada vez mais longe. Viro-me para trás para acenar ao homem que me salvou. Um último adeus antes de me libertar. Mas ele está rodeado de pessoas, um exército que se reuniu à sua volta. Para se despedir de mim? Para me impedir de ir ter com o mar? Um homem alto de bigode retorcido aproxima-se. Tem uma espada rectangular na mão, uma espada muito afiada que brande de um lado para o outro. Protejo a cara com as mãos e a espada corta-me, finos cortes de papel que nem sequer sangram, são apenas dolorosos como uma delicada dormência que me impede de estender os dedos.

                Protegendo-me, andando para trás, pedindo clemência, encontro a linha da água. O homem da espada para e eu avanço cada vez mais. Tenho água pelos joelhos, tenho água pela cintura, tenho água pelo peito. É uma água muito quente, como uma sopa cheia de sal, quase sem ondas. Penetro no mar e estou no meio de grandes algas, muitas algas húmidas e verdes que se espalham à minha volta fazendo formas de enormes animais. Uma das formas aproxima-se. É um cavalo, como se feito de ervas enroladas umas nas outras. O seu olho vegetal olha-me.

                Lá em cima, as nuvens são o cobertor da lua.

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