quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Yokan



               








 Yokan


                 Desde pequeno que me esforço bastante para não ser a causa de incómodo de alguém. Meus pais ensinaram-me que devia ser sempre discreto e cuidadoso para não magoar as pessoas à minha volta e até hoje, que já sou muito mais velho, mantenho essa regra de ouro. Por isso, quando me sento no metro com as compras aguardo sempre que todos se sentem. Assim, não roubo o lugar a ninguém.

                Às vezes as pessoas oferecem-me o lugar. Olham para mim, talvez já um pouco encurvado, talvez já um pouco enrugado, talvez já um pouco embranquecido, devem pensar que estou com dificuldades em estar no meio da multidão do metro, carregado com sacos, debilmente agarrado ao varão, procurando encontrar a porta de saída sem ser arrastado pela corrente de gente, atenção à distância entre as portas e a plataforma, takecareofiorbelongings… Mas a verdade é que prefiro estar em pé a ver alguém impedido de se sentar por mim ou pelos meus sacos de compras.

                O supermercado onde vendem a comida que o peixe gosta mais fica longe, são duas estações de metro. Por vezes, distraio-me a olhar para os pombos que estão dentro da estação, tentando perceber como entraram ali, perceber o que procuram exactamente. Por vezes tenho vontade de tirar um pouco do pão que trago nos sacos e dar-lhos, para ver se finalmente encontram o que procuram. Mas isso incomodaria toda a gente. Por vezes gostava de trazer o meu rádio portátil e ouvir aquelas belas músicas dos anos oitenta. Mas isso incomodaria toda a gente.
               
                Se me mantiver em pé, em silêncio, virado de costas, ninguém irá reparar em mim. Eu reparo nas coisas, as coisas trazem-me memórias, mas desde que ela morreu que sinto a cabeça aglutinada, como se tudo o que existe fosse um símbolo da sua antiga existência. Estou no metro e vejo um anúncio do novo concerto do Roberto Carlos e o meu primeiro pensamento é sempre “como ela gostava do Roberto Carlos”, nunca as músicas, nunca as roupas, mas “como ela gostava”, “como ela fazia”, “como ela queria”. Nesses momentos sei que tenho saudades. Impeço-me de chorar, para não incomodar.

                Quando chego a casa com as compras, compras que faço todas as semanas após a viagem de metro, a primeira coisa que faço é dar comida ao peixe. Li num guia sobre aquariofilia que comprei na altura que não se deve alimentar este tipo de peixes com muita frequência, pois eles não têm auto-controlo e comem até morrer. Depois, limpo o filtro do aquário e ajusto a temperatura. É o meu pequeno prazer semanal, ver aquela criatura minúscula, que não percebe nada, fazendo um trejeito que talvez seja de felicidade.

                Depois, como todos os dias, encomendo o jantar do restaurante e como sozinho a olhar para o peixe. Depois de ter voltado da guerra prometi a mim mesmo que apenas comeria os alimentos preparados pela minha noiva, que veio a ser a minha esposa. Mas agora ela já não está aqui, portanto não pude cumprir a promessa. Ela também tinha prometido que, enquanto eu não voltasse da guerra, que beberia sempre o café queimado. Habituou-se, nunca mais bebeu o café normal.

                Acho que também ela não cumpriu bem a promessa e que, por isso, estamos quites.

                Não tenho televisão, a casa ainda está decorada à maneira dela, cheia de quadros floridos e pastorinhas de cerâmica, de certa forma é para mim insuportável estar aqui, mas também não sei o que fazer, para onde ir, como me distrair. Portanto, sento-me na varanda a ouvir rádio, sempre baixinho, muito baixinho para não chatear os vizinhos. Ao menos quando a nossa filha ainda cá estava tínhamos alegria. Mas depois da morte da minha esposa, ainda era adolescente a garota, tudo mudou. Acabou a escola, empregou-se, saiu de casa, casou-se, teve o bebé, descasou-se… Agora está na Inglaterra.

                Vejo no mapa onde exactamente é a Inglaterra, a quantos quilómetros exactamente fica esse país. O peixe olha também para lá, provavelmente constatando que teríamos de atravessar muita água para lá ir.

                O peixe foi um presente. Um presente meu para o meu neto. Comprei-o numa loja de animais no fim da rua e fui a pé com o saquinho transparente na mão até à sua casa. A minha filha zangou-se.

                “Para que é que vais dar essas porcarias ao miúdo? Não vês que não serve para nada? Que não o podemos levar?”

                “Levar para onde?”

                Foi nesse dia que ela me disse que iam de abalada para Inglaterra, que vivia lá uma amiga que lhe ia arranjar trabalho, que vivia lá um amigo que lhe ia arranjar casa, que vivia lá mais não sei quem que ia fazer mais não sei o quê, fiquei confuso, tão confuso, olhei em volta à procura da minha esposa, mas ela não estava lá, nunca mais estaria em lado nenhum, foi assim que fiquei com o peixe.

                Depois comprei um livro de aquarofilia, porque prometi ao meu neto que ia tomar conta do peixe até ele voltar.

                O peixe está um pouco maior, come bem, tem algas de plástico no aquário e parece estar feliz à sua maneira, com o seu olhar vítreo sempre fixado em alguma coisa que está fora da minha compreensão. Como não tenho ninguém com quem falar, falo com o peixe. Mas ele nunca responde, ele nunca percebe.

                Durante os primeiros tempos após a partida da minha filha, tentei ligar-lhe para o telemóvel. Eu não tenho uma coisa dessas, só tenho o meu velho telefone fixo, um dos que não têm botões, em que ainda se disca o número. Portanto, quando ela não atendeu pensei que o telefone estivesse estragado. Chamava, chamava, ia sempre para a caixa de mensagens. Houve um dia em que deixou de chamar. Procurei um técnico, que disse estar tudo bem com o telefone. Provavelmente a rapariga tinha mudado para um número inglês, para não pagar roaming.

                Perguntei como poderia obter o número. O senhor disse que não sabia. Perguntei como poderia falar com ela. O senhor disse para falar pelo skype. Eu não sei o que é o skype. O senhor disse que se usava num computador.

                Por isso, fui à biblioteca municipal e pedi para usar um computador. Em princípio, deveria ser semelhante a uma máquina de escrever, mas devo confessar que não percebi nada sobre ele. Sabia que começava tudo com o carregar num tal de botão Onofre… Pedi ajuda e a simpática menina da biblioteca conseguiu, através do nome próprio e apelido, encontrar uma página com muitas fotografias da minha filha e do meu neto, rodeados  de pessoas que eu não conhecia, felizes, mais crescidos, com roupas bonitas, ela com um ar um pouco cansado, talvez. A menina da biblioteca disse-me que escrevesse uma mensagem para ela. Escrevi:

                “QUERIDA FILHA OLÁ DAQUI PAI TELEFONA-ME NÃO TE CONSIGO TELEFONAR”

Alguns segundos depois, para meu grande espanto, apareceu uma resposta:

“Por favor pai, qual é a tua? Estás a gritar, não se escreve assim! Não se fala mais por telefone, manda mensagem por aqui ou não fales. Quando puder falo mais, agora muito ocupada.”

A menina da biblioteca ficou a olhar para mim e eu sabia que os meus olhos se enchiam de lágrimas. Procurei, como sempre, o conforto da minha esposa e, como sempre, percebi mais uma vez que ela não existia mais. Fui-me embora. Cheguei a casa. Falei com o peixe.

Estou até este momento, mais ou menos, a tentar falar com ele. A tentar comunicar. Acho que estou a conseguir ter uma espécie de ligação, uma ligação entre algo muito velho, que sou eu, e algo muito mais antigo, que é o peixe. Sei que o devia libertar. Estudei no livro de aquariofilia que este tipo de peixe é originário da Ásia, sendo especialmente popular em lagos da China. Como levar o peixe para a China? Talvez eu próprio devesse ir para a China.

Levaria o peixe num saquinho transparente e, do centro de uma ponte em madeira num jardim de um qualquer pagode, deixaria cair todo o seu conteúdo. Depois, se a ponte fosse suficientemente alta, eu próprio me deixaria cair. Sim, cair dentro de um rio, dentro de água corrente, para ser também um peixe, escamas douradas, escamas prateadas, também eu um peixe de coração frio, sangue gelado, coração despedaçado, eu finalmente livre, sem incomodar ninguém, nadando com a corrente, rodeado de outros peixes como eu, até a voltar a encontrar, até voltar a encontrar algo de muito pequenino mas tão bom, tão bom… Coração frio, coração desfeito. Talvez já me tenha tornado num peixe agora.

Mas até as pedras. Até as pedras se sentem tão sós…


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