Mercedes, Garcia Bravo
Desafio de Escrita #7
Tema: Uma Pessoa do Passado
Data: 31 de Março
300 Palavras
(atrasei a data e ultrapassei o limite, desafio não cumprido)
Mercedes deu-me um pontapé
Mercedes
deu-me um pontapé e eu chorei. Foi grave, os seus sapatos eram brancos e
bicudos, com salto e pele bovina, sapatos de adulta para uma criança patuda,
sapatos que a mãe empresta para a festa, eram fortes, eram duros, doeu muito.
Ficou uma nódoa negra tão grande, potencial abcesso, que o meu pai fotografou
para fazer queixa à escola.
Revelaram-se
as fotografias quando já todos tinham esquecido o caso. Mercedes nunca recebeu
ordem de suspensão ou expulsão e manteve-se tal como era, gorda e evidente,
dominando todas as danças infantis e pontapeando as crianças mais passivas. O
tempo foi passando e mudámos todos de turma, fui perdendo Mercedes de vista nos
corredores da escola. A rapariga crescia, é claro, como todos nós, mas a sua
forma curvilínea nunca deixava de arredondar e o seu sorriso sempre tinha uma
sombra de gordura.
Continuava
a vê-la, cada vez maior, cada vez mais expressiva na sua vontade de dominação,
até que saímos todos da escola. Depois disso, foi rápido até nos esquecermos
todos uns dos outros e começarmos uma nova vida. Esqueci o pontapé e esse dia
em que chorei.
Claro
que, passado uns anos, a nostalgia da recordação infantil regressa e, por isso,
fazem-se esforços para organizar encontros, jantares e almoços, coisas do
género. Nessa altura, lembrei-me de Mercedes e do seu sapato branco. Será que
se a encontrasse de novo a poderia humilhar, defender-me tardiamente do ataque
inusitado de que havia sido vítima? Fantasiei sobre este assunto e pratiquei
várias versões do diálogo do confronto, tudo na minha cabeça. Pensei que
poderia abrir logo as hostilidades acendendo um cigarro (chocante fumar
cigarros, pensava eu) e dizendo “continuas gorda, Mercedes”, ou algo igualmente
agressivo.
“Continuas
gorda, Mercedes, és um mamute, Mercedes, és uma besta, Mercedes, merecias um
pontapé nessa cabeça gorda, Mercedes, odeio-te, Mercedes, ainda te posso odiar,
Mercedes, pede desculpa, Mercedes, eu ainda tenho as fotografias, Mercedes,
Mercedes, Mercedes, fode-te, Mercedes, Mercedes, merdas de Mercedes.”
A
antecipação do jantar oficial da quarta classe abria-me o sorriso e eu sentia
os meus caninos desejosos de provar a carne tenra da ofensa, a vingança gelada
do palavreado ensaiado. Mas, lá chegada, que é de Mercedes? Estavam lá todos, a
Barroso, os Brunos, a Chiquinha, todos. Mas que é de Mercedes?
Informou-me
a rede social que vive agora no Dubai ou noutro lugar igualmente estranho. Vi
as suas fotografias. A sua cara redonda, menos gorda, mais curvada, vive agora
coberta pelo manto do respeito muçulmano. Continuei a vê-las, Mercedes feliz,
Mercedes cheia de vida e cheia de tudo. E, mais abaixo, uma fotografia de
infância. Com os sapatos brancos. E continuo sempre a recordar-me de quando
Mercedes me deu um pontapé e eu chorei.
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