domingo, 15 de abril de 2018

Desafio de Escrita - O grito que não era meu

"O Grito", Edward Munch










Desafio de Escrita #7
Tema: A Voz Que Não Era Sua
Data: 30 de Abril
300 Palavras
O grito que não era meu

                São os olhos fechados de quem está a dormir e foi com esses olhos fechados que adormeci. Abrem-se agora e posso observar o súcubo que criou raízes num canto do tecto, as suas mãos largas espraiando-se em sombras e o sorriso carnívoro, muitos dentes triangulares.

                “Vai-te embora, não me vais possuir mais”, é o que digo. O súcubo roda a cabeça e num estampido desaparece. A pressão que havia no quarto começa a desaparecer e, aliviada, preparo-me para adormecer de novo. Espero agora que não haja mais sonhos, esses pesadelos eróticos que me atormentaram durante todos estes anos. Descobri o demónio que me andava a comer os sonhos e os defecava sob a difusa forma de uma égua nocturna, cavalgando por cima de todos os meus terrores.

                No entanto, volto imediatamente a acordar. O meu corpo, o meu corpo! O meu corpo está paralisado! Tento rebolar para fora da cama, tenho a certeza que ainda estou a dormir. Tenho de acordar e, por isso, tento rebolar para fora da cama. Rebolo e caio, mas caio em cima da cama, uma e outra vez, de novo, de novo, esforço-me por abrir os olhos e de repente, qual roupa pendurada num puxador de armário, está lá uma pessoa morta. Uma pessoa morta, pendente, num vestido espectral. Nessa altura consigo gritar mas o grito, quem grita é a morta, a minha voz é a voz da morta e toda a minha garganta é sangue dos arranhões. Luto para me libertar, mas as mãos apertam-me o pescoço e as unhas arranham-me e o sangue afoga-me, não interessa porque a minha voz não é minha, a minha voz está na pessoa pendurada no armário e eu estou morta, eu estou morta, eu estou morta?

                As mãos da minha mãe abanam-me e trazem-me de volta. O mundo real. A pessoa morta era só um vestido pendurado no puxador da porta do armário. E eu sou só eu. Parece que o súcubo ainda não se foi embora.

domingo, 1 de abril de 2018

Desafio de Escrita - Labirintite

Desafio de Escrita #6
Tema: Labirinto
Data: 28 de Fevereiro
300 Palavras
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Desafio de Escrita - Mercedes deu-me um pontapé

Mercedes, Garcia Bravo










Desafio de Escrita #7
Tema: Uma Pessoa do Passado
Data: 31 de Março
300 Palavras
(atrasei a data e ultrapassei o limite, desafio não cumprido)

Mercedes deu-me um pontapé

                Mercedes deu-me um pontapé e eu chorei. Foi grave, os seus sapatos eram brancos e bicudos, com salto e pele bovina, sapatos de adulta para uma criança patuda, sapatos que a mãe empresta para a festa, eram fortes, eram duros, doeu muito. Ficou uma nódoa negra tão grande, potencial abcesso, que o meu pai fotografou para fazer queixa à escola.

                Revelaram-se as fotografias quando já todos tinham esquecido o caso. Mercedes nunca recebeu ordem de suspensão ou expulsão e manteve-se tal como era, gorda e evidente, dominando todas as danças infantis e pontapeando as crianças mais passivas. O tempo foi passando e mudámos todos de turma, fui perdendo Mercedes de vista nos corredores da escola. A rapariga crescia, é claro, como todos nós, mas a sua forma curvilínea nunca deixava de arredondar e o seu sorriso sempre tinha uma sombra de gordura.

                Continuava a vê-la, cada vez maior, cada vez mais expressiva na sua vontade de dominação, até que saímos todos da escola. Depois disso, foi rápido até nos esquecermos todos uns dos outros e começarmos uma nova vida. Esqueci o pontapé e esse dia em que chorei.

                Claro que, passado uns anos, a nostalgia da recordação infantil regressa e, por isso, fazem-se esforços para organizar encontros, jantares e almoços, coisas do género. Nessa altura, lembrei-me de Mercedes e do seu sapato branco. Será que se a encontrasse de novo a poderia humilhar, defender-me tardiamente do ataque inusitado de que havia sido vítima? Fantasiei sobre este assunto e pratiquei várias versões do diálogo do confronto, tudo na minha cabeça. Pensei que poderia abrir logo as hostilidades acendendo um cigarro (chocante fumar cigarros, pensava eu) e dizendo “continuas gorda, Mercedes”, ou algo igualmente agressivo.

                “Continuas gorda, Mercedes, és um mamute, Mercedes, és uma besta, Mercedes, merecias um pontapé nessa cabeça gorda, Mercedes, odeio-te, Mercedes, ainda te posso odiar, Mercedes, pede desculpa, Mercedes, eu ainda tenho as fotografias, Mercedes, Mercedes, Mercedes, fode-te, Mercedes, Mercedes, merdas de Mercedes.”

                A antecipação do jantar oficial da quarta classe abria-me o sorriso e eu sentia os meus caninos desejosos de provar a carne tenra da ofensa, a vingança gelada do palavreado ensaiado. Mas, lá chegada, que é de Mercedes? Estavam lá todos, a Barroso, os Brunos, a Chiquinha, todos. Mas que é de Mercedes?

                Informou-me a rede social que vive agora no Dubai ou noutro lugar igualmente estranho. Vi as suas fotografias. A sua cara redonda, menos gorda, mais curvada, vive agora coberta pelo manto do respeito muçulmano. Continuei a vê-las, Mercedes feliz, Mercedes cheia de vida e cheia de tudo. E, mais abaixo, uma fotografia de infância. Com os sapatos brancos. E continuo sempre a recordar-me de quando Mercedes me deu um pontapé e eu chorei.