"A Morte de Casagemas", Pablo Picasso
Fase Azul
Aconteceu
tudo muito mais rapidamente do que se poderia pensar. Não posso chamar este
evento de “transformação” ou “mutação” ou outra coisa qualquer. A verdade é
que, até descobrir realmente o que se tinha passado, pensei comigo mesmo que o
que estava a acontecer não podia ser real. Mas foi real. É real.
Apesar
de não ter nascido com mancha mongólica, nem nada que se parecesse, o meu tom
de pele rapidamente se assemelhou a uma nódoa negra que se alastrasse pelo
corpo. A mudança de pigmento foi radical, apesar de não ter sido assim tão
súbita. Comecei, ao início, a reparar que a minha pele estava mais baça, menos
elástica, com uma cor alterada. E, a pouco e pouco mas muito rápido, ficou toda
desta cor. E não só a epiderme, não. Também a mucosa, lábios, conjuntiva, até
mesmo lugares do corpo que não se costumam nomear, todo o meu corpo ficou
assim. Azul. Transformei-me numa pessoa azul.
Quando,
nesse certo dia dos meus trinta e poucos anos, olhei para o espelho e me vi
totalmente azul, entrei em pânico. O que haveria de fazer? A transição de cores
havia sido rápida, apesar de bastante consistente. Eu não estava à espera de
ficar assim. Pensei que fosse uma doença aguda, um ataque fulminante, vírus
terrível que tivesse contraído nas minhas deambulações diárias. Sei lá, no
autocarro ou assim. Algo desse género. Fixei-me nessa ideia quando liguei para
o trabalho a dizer que não podia ir. Estava com uma grave infecção, disse eu
nessa altura. Avisaram-me que deveria consultar um médico para formalizar a
baixa, mas sair de casa para falar com quem quer que fosse parecia-me uma
perspectiva absolutamente aterrorizante. Depois, telefonei para a minha mãe a
dizer que estava doente. Expliquei que não me poderia vir visitar no fim de
semana, como sempre fazia, porque podia ser contagioso. Não adiantei muito
mais.
Passei
esse primeiro dia sentado na sala, na escuridão, com um pano molhado, a tentar
tirar a cor azul da minha pele.
Não
funcionou, claro.
Passados
poucos dias, tinha terminado os mantimentos que havia no frigorífico e na
despensa. Estava limitado a uma lata de atum e o fundo de um pacote de leite.
Tinha de sair à rua. Não havia outra solução. Esses momentos que tinha passado,
completamente só, sem ligar a televisão, sem olhar para o smartphone, sem fazer
nada com medo que me descobrissem, acabavam de ser arrasados. Tinha de sair à
rua. E, se tinha de o fazer, pensei em fazê-lo com toda a naturalidade. Como se
nada se tivesse passado. Como se eu não fosse azul. Afinal, sentia-me saudável,
estava com apetite, fezes e urina normais, da cor normal. Só a pele era
diferente. Que mal podia acontecer?
Mal
sabia eu…
Vesti-me
com um sobretudo comprido, apesar da temperatura amena de um Maio primaveril,
pus um chapéu, pus óculos escuros. Andei anónimo, camuflado no meio da
normalidade do dia-a-dia, até chegar ao supermercado, fazer as minhas compras e
esperar na fila. Foi nesse momento que um miúdo pequeno, sentado de frente para
mim no carrinho do supermercado, apontou para mim e gritou “azul!” A mãe olhou
para mim e o seu esgar apavorado denunciou-me. Imediatamente, todas as pessoas
se afastaram.
Algumas
chamavam-me “alien”, outras diziam que eu era doente. Sem pagar as compras,
peguei nos sacos e fui para casa a correr. E parecia-me que as pessoas fugiam
de mim, com medo. Umas religiosas que me viram começaram a rezar, a
exorcizar-me, a chamar-me satã. Parecia-me que fugiam de mim, mas se calhar era
eu quem fugia deles. O pânico apoderara-se de mim e tudo o que conseguia fazer
era correr, sacos de compras roubadas nas mãos, tentando não deixar cair nada,
tentando não ceder à tentação de dizer àqueles que sempre foram meus vizinhos
de bairro “sou eu, sou apenas eu!” Mas seria eu apenas eu? Eu podia ser azul?
A
partir daí começou a minha fase de maior isolamento social. Liguei o computador
e passei a fazer todas as minhas compras online. Pesquisei sobre o meu
problema. Acabei por descobrir que a nova cor da minha pele era muito
compatível com uma doença causada pela inalação e contacto directo com sais de
prata. Depois de muito pensar, acabei por concluir que poderia mesmo ser isso:
apesar de no meu trabalho eu ser apenas um mero empregado de secretária, houve
três meses de actividade intensa em que eu e outros colegas tivemos de visitar
uma das minas da empresa. Talvez tenha sido disso. A internet dizia que não era
grave, que não causava a morte de forma directa. Procurei fóruns e comunidades
com outras pessoas vítimas do mesmo problema. Não encontrei muitas, mas aquelas
que conheci tinham todas vidas perfeitamente normais.
Portanto,
passadas algumas semanas, decidi voltar a encontrar-me com a minha mãe.
Expliquei-lhe o meu problema pelo telefone. Quando meu viu, assim todo azul,
saltaram-lhe as lágrimas dos olhos, mas acabou por aceitar que o seu filho
continuava a ser a mesma pessoa, apenas numa outra tonalidade. Motivado por
esse encontro, decidi voltar ao trabalho.
Talvez
esse tenha sido o erro principal. Assim que entrei pela porta dos escritórios
da fábrica, senti todos os olhos em mim. Os meus colegas mais próximos vieram,
a medo, perguntar-me se estava tudo bem. Expliquei a origem da doença, o facto
de não ser contagiosa, tentei deixá-los descansados. Mas alguém há-de ter dito
alguma coisa às entidades superiores, porque rapidamente me chamaram ao
gabinete da direcção.
Não
acreditaram que eu estivesse doente. Muito menos acreditaram que a provável
causa da doença fosse a visita às minas da fábrica. Admitiram, desde o início,
que eu era um ser maléfico que se tinha transmutado, disfarçado em inocente
empregado para depois se revelar de uma outra espécie. Mais forte, mais
inteligente, enviado para aquela empresa para roubar as tarefas aos outros
trabalhadores. Pediram a minha demissão.
Foi
assim que começou a minha luta. Decidi levar o meu caso às maiores instâncias.
Apareci na televisão e debates sobre mim começaram. Por um lado, havia aqueles
que achavam que se devia investigar melhor a exposição aos sais de prata, para que
não acontecesse a mais ninguém. Mas por outro, a maioria das pessoas debatia se
eu tinha uma deficiência ou se, afinal, tinha misteriosos poderes. Um grupo de
seguidores de um falso profeta decidiram escolher-me como elemento a idolatrar.
Criou-se uma religião em que acreditavam que eu tinha vindo da Atlântida, ou
outra coisa qualquer, para mostrar os segredos dos Mu.
No meio
disto tudo, eu só queria gritar “Sou normal!”
De
forma a manter sempre o público interessado na minha causa, acampei com a minha
cor azul à porta da fábrica. Prometi que só sairia de lá até admitirem que eu
era uma pessoa igual às outras, o que me permitiria arranjar outro emprego
qualquer. Passei algumas semanas ao sol e à chuva, frio e calor, protegido por
um kispo e pela minha tenda. Foi nessa altura que escrevi o meu manifesto.
Nele, pedia a todas as pessoas vítimas desta doença que se unissem para provar
que, apesar de não nos acreditarem, somos apenas pessoas iguais às outras
todas.
Racismo?
Discriminação? Nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo. Mas isso foi só
até ficar azul. Agora, sentia em mim a raiva de todos os povos que nunca foram
aceites pela sociedade moderna e que sempre foram tratados como selvagens. A
mim tinham-me como uma entidade superior, quando tudo o que eu sempre desejei
da vida foi ser uma pessoa com uma vida sossegada e normal.
Depois
do discurso, mais pessoas azuis se juntaram a mim na minha luta. Somos muito
poucos, mas conseguimos criar uma fundação para proteger os outros como nós.
Protegê-los da discriminação, encontrar culpados para o seu problema.
Ao início
ainda tinha a esperança de que pudesse voltar à minha cor normal. Mas, após
este tempo todo assim, começo a pensar… O que é uma cor normal? Eu tenho as
minhas mãos, eu tenho os meus pés. Tenho orelhas, nariz e olhos. Tenho dentes,
tenho ossos. Tenho coração e cérebro. Tenho veias. E quase todas as pessoas têm
tudo isso também. Seremos assim tão diferentes uns dos outros?
gosto de como escreves
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