quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O Meu Parasita

Illustration by Mrzyk & Moriceau










O Meu Parasita



                Oh, que belo campo de férias! Estende-se a relva em espaços divididos por delicadas estatuetas, mármore, pedra, pedras com formas humanas, pedras com formas geométricas, pedras com formas de pedra. Corro pelas escadas abaixo, ténis ligeiros, ligeiramente rotos, cabelos leves levantando-se com o cheiro das flores. Há muitos recantos escondidos e os outros adolescentes, vestidos com seus calções de lycra azuis e suas t-shirts soltas, reúnem-se neles para conversar e para se beijarem. Encontro vários grupos, mas continuo o meu caminho, afagando uma estátua, cumprimentando uma ave, não são estes os meus recantos, não são para mim estes beijos.

                Esses esperam-me noutro sítio.

                Estaco. Encontro um grupo de jovens muito loiros e bronzeados, suor encharcando-lhes os sovacos, um aroma selvagem e estranhamente limpo. “O que fazes aqui”, perguntam-me, todos cheios de sorrisos, dentes muito alinhados e brilhantes, pessoas tão perfeitas. “Estou à procura dele”. Eles soltam gargalhadas, como se eu tivesse sido apanhada no centro de alguma fofoca ardente. Sugerem ir até à piscina, pois algo especial se está a passar lá.

                É uma piscina rectangular, não muito grande, ladeada por mosaicos decorados, tudo em tons de branco e pedra, perfeitamente encaixados numa pequena depressão do terreno. À sua volta, tudo é verde de relva aparada e folhas saudáveis. Aqui não há flores. Todas as plantas são escuras e a água clorada da piscina é tão azul… Mas reparo que algo de estranho se passa. Os jovens sentam-se daquele local privilegiado para ver os acontecimentos, mas eu aproximo-me. Dentro da piscina está uma enorme manta, uma raia crescida, que ocupa quase todo o espaço de uma ponta à outra, transversalmente. Por baixo dela, está um hipopótamo, menor mas com enormes presas e a mucosa rosada, cheia de sangue. Lutam um contra o outro, a manta abanando as suas asas cartilaginosas, o hipopótamos rugindo e abrindo a sua boca flácida para morder o outro animal. E tudo parece estar a correr bem para o hipopótamo. Não acho mal. Gosto de mantas. Gosto de raias. Gosto de uma boa posta grelhada. Posta, posta, hoje vamos jantar raia.

                A manta parece vencida e flutua na água, como um grande sinal de somar. O hipopótamo sai da piscina e sacode-se da água. Ver esta luta foi como uma purificação. A água salpicando, molhando tudo à sua volta, o sangue escorrendo dos arranhões dos animais, os rugidos, o suor, o suor… Mas não está tudo bem. A manta, que parecia morta, ergue-se com as suas barbatanas laterais, um voo impossível, um voo que a afasta da sua condição aquática e a coloca numa outra categoria filogenética. A dos monstros. Com uma das barbatanas, envolve o hipopótamo e atira-o para dentro de água. É a sua morte. Não vai haver posta, não vai haver posta, o sangue do paquiderme é tudo o que resta na piscina e o meu umbigo começa a doer, dói tanto, algo nasce dentro dele e expele o seu botão para o exterior, não, o meu umbigo!

                “Dói-me o umbigo!”

                Corro de volta para junto dos jovens. Uma rapariga com os cabelos muito compridos e saudáveis levanta a minha t-shirt.

                “Estiveste junto da água. Agora tens o parasita.”

                O parasita? O que é o parasita? Ninguém me sabe explicar e dançam em roda, à minha volta, sorrisos inocentes, vais morrer, vais morrer, vou morrer, ninguém me salva? Porque é que ninguém me salva? Quero sair dali, correr para longe, mas o círculo aperta-se à minha volta. No meio deles está o monitor do campo de férias, um homem muito alto e de cabelos negros, com um aspecto detestável e um sorriso encantador.

                “Eu tiro-te o parasita.”

                Vamos para a casa da piscina, onde estão guardadas todas as bóias e outros flutuadores. Ele deita-me em cima de um colchão de borracha, cheio com ar, um colchão vermelho com um desenho de um dálmata. Levanta-me a t-shirt e posso ver a minha barriga, pálida, gordurosa, rotunda. O umbigo cresceu, está todo cá fora, e num dos lados sai a cabeça de um pequeno verme pegajoso. O monitor pega numa espingarda e dá uma gargalhada.

                “Levanta o braço!”        

                Eu levanto o braço. Ele baixa a minha manga e aponta a espingarda à minha axila. Fecho os olhos com força e oiço o tiro. Estou livre do parasita. Voou para longe com a pressão da bala, que atravessou todos os meus vasos sanguíneos desde o plexo braquial até ao umbigo. Mas quando abro os olhos, descubro que ainda estou dominada pelo bicho. Porque agora é Inverno e estou na misteriosa estação dos ferries que nunca vão para o outro lado do rio. Estes ferries navegam, mas voltam sempre para o seu ponto de partida.

                As minhas roupas mudaram, certamente obra do parasita. Estou com o sobretudo comprido, impermeável, as botas quentes. Uma chuva miudinha não me pode atingir, porque estou bem agasalhada. Entro no ferry e vou até ao bar. Subitamente, vejo-o. Lá está ele, era ele quem eu procurava para beijar, era ele quem eu procurava no campo de férias! Mas o que faz ele aqui? Só eu posso apanhar o ferry, pois o ferry vai para minha casa. Falamos um pouco e ele segue-me, estamos em casa. Começa a rir-se quando acendo o ecrã do computador. Vejo as nossas fotografias. Ele foi apagado. Não está em nenhuma. E o riso dele é histérico, nascendo de dentro do abdómen, saindo pelo umbigo. Choro, grito, foi tudo mentira?

“Foi tudo mentira!”


                Foi só um jogo? Quem é esta mulher? Quem é esta mulher feia ao teu lado na fotografia? Sou eu? Esta não sou eu!

                “Sempre foi um jogo.”

                Encostado contra o vão da porta, o riso continua a sair-lhe do umbigo. Está alto, está demasiado alto. Os seus olhos são largos e brilham, verdes como jóias, injectados de sangue. Uma serpente, uma ratazana, ele não é ele, ele é o parasita e consome-me!

                Corro para o armário da roupa e tiro de lá uma lata de feijão preto. Abro a lata e, às mãos cheias, como todo o seu conteúdo. Mas não é o suficiente. Onde estão os meus comprimidos? Preciso deles todos, preciso de todos ao mesmo tempo. Coloco a mão no armário e tiro de lá uma garrafa de vodka. Começo a bebê-la, não sabe a nada, é vodka do supermercado, tudo o que eu quero é bebê-la toda e vomitar. Vou vomitar o feijão, vou vomitar o parasita, vou vomitar tudo. Vou vomitar a alma. Talvez se beber a garrafa toda consiga vomitar.

                Talvez se beber a garrafa toda consiga acordar.