Ace Drawing
Love Hotel
“Vamos
ao Love Hotel, vai ser giro!”, disseram eles.
A
verdade é que fomos mesmo. O Love Hotel tinha aberto há poucos meses e era a
nova atracção da cidade. Inspirado pelos seus congéneres japoneses, oferecia
algo nunca visto neste local. Um hotel de quartos temáticos, onde casais e
outras pessoas (quem quisesse, na verdade) poderiam ter uma noite divertida com
várias actividades… Sim, essas actividades. No nosso caso, iríamos apenas para
beber tudo o que viesse incluído no preço e experimentar dormir numa cama
rotativa. Por isso, fomos mesmo.
Quando
chegámos, foi-nos atribuído a chave do quarto número IV por uma máquina
automática. Um número aleatório para um número de pessoas aleatória, desejosas
de fazer todo o tipo de coisas alienadas que o local tinha para oferecer.
Subimos uma imensa escada rodeada por papel de parede amarelo com um padrão de
losangos mais claros e chegámos a um patamar com dois corredores.
“Casados”,
anunciava um painel no da direita.
“Solteiros”,
anunciava um painel no da esquerda.
Rindo
muito, achámos que o nosso corredor seria o da esquerda. Começando a avançar em
busca do nosso quarto, ainda rodeados pelo tal papel de parede foleiro,
descobrimos que a porta número IV era a primeira. Por isso, colocámos a chave,
pendurada num porta-chaves quadrangular, paralelepípedo branco. Entrámos. Lá
dentro, ainda o mesmo papel de parede.
Depois,
não recordo bem o que se passou. O quarto não tinha janelas e deixara de ter
porta. Não tinha nem um móvel. Começou a descer como um elevador e a próxima
coisa que sei é que estávamos num lugar novo.
Ao
início foi difícil de nos habituarmos. Mas agora estamos tão bem integrados que
já mal falamos uns com os outros. Fizemos novos amigos e acho que os outros nem
se lembram bem do lugar de onde viemos. Na verdade, acho que ninguém se lembra
bem do lugar de onde veio, porque nenhuma das pessoas que aqui vive nasceu
neste sítio. Quando questionados de onde vieram, todos referem alguma coisa
sobre o Love Hotel. Mas parece que já não interessa muito a ninguém. Todas as
pessoas trabalham com um minério estranho que vem da montanha próxima, uma
espécie de lápis lazúli que se apresenta em calhaus perfeitamente redondos.
Compram-no, vendem-no, trocam-no por comida. Mas ainda não descobri para que
serve exactamente.
Para
além destas pessoas, há os homens-pássaro. Eles vivem no topo da montanha e
podemos vê-los a voar sobre a cidade. São homens com asas em vez de braços,
garras em vez de pés, bicos em vez de bocas. Os olhos são humanos e podemos
distinguir os géneros porque as mulher-pássaro têm seios, também eles cobertos
por penas coloridas. Há homens-pássaro de várias cores… Amarelos, azuis,
vermelhos… Às vezes pousam, mas não devemos tentar comunicar com eles, pois são
agressivos. Nos primeiros tempos tentei falar com um deles, uma mulher, mas o
grito com que me respondeu ensurdeceu-me e aterrorizou-me. Podia ver o seu
grito no fundo da garganta, como um vómito branco, pastoso, grumoso,
redemoinhando em direcção à glote muito laranja, tremendo de emoção. Nunca mais
falei com estas criaturas.
Ninguém
parece dar-lhes muita atenção, de qualquer forma. Excepto quando atacam um
transeunte qualquer e o levam pelos ombros para os seus ninhos, onde certamente
o comerão vivo.
Passou
algum tempo e o meu cabelo ficou azul, como as pedras que fazem movimentar a
vida nesta cidade. O vestido que trazia cortava-me a circulação dos braços e
por isso arranjei roupas novas. Aqui, andam todos vestidos com longas túnicas
brancas e faixas à volta do pescoço, de várias cores… Amarelas, azuis,
vermelhas… Por mim, consegui arranjar uns calções e uma t-shirt de alças.
Sinto-me completamente diferente do que era antes de ir para o Love Hotel e ter
vindo aqui parar.
Houve
uma vez que consegui voltar. Estava no quarto do papel de parede dos losangos
outra vez. Mas tinha-me esquecido de alguma coisa na minha nova casa e voltei
para trás. Quantas vezes me arrependo…
Mas
agora passa-se algo extraordinário. Vim com algumas amigas do passado, aquelas
que tinham vindo comigo para este sítio, para uma oficina. Viemos para partir
algumas pedras azuis em pedras azuis um pouco menores e estávamos nesta
actividade quando eu encontrei, escondido debaixo de um pano muito sujo, um
velho teclado polifónico da Casio. Recordei que, na altura, não sabia tocar
piano. Mas que gostava de tentar. Então tentei. Comecei a tocar uma música
conhecida e todas as minhas amigas começaram a rir. Ia parar, porque estava a
tocar muito mal e tinha vergonha, mas olhei para o tecto e vi algo que
reconheci. Era um pequeno paralelepípedo branco.
“A
chave! A chave para voltarmos para casa!”
Elas
olharam para cima e perceberam tudo. Começaram a subir para cima das mesas para
tentar apanhar o objecto, mas ele voltava a integrar-se no tecto.
“Toca
mais, toca!”
“Mas
eu não sei tocar!”
“Faz
barulho, qualquer barulho, toca uma merda qualquer!”
Então
eu fiz barulho. Mexi nos botões todos, para fazer as teclas soarem como
flautas, violinos ou vibrafones. Toquei com os cotovelos. Comecei a cantar.
Gritei, também. E o paralelepípedo começou a cair e, com ele, todo o tecto
começou a desfazer-se, qual serpente quadrilátera, composta de centenas de
poliedros.
As
minhas amigas apressavam-se para apanhar tudo aquilo.
“São todas
chaves! São todas chaves, podemos todos sair daqui! Todas as pessoas podem
voltar para casa!”
Parei e pus a
mão no bolso. Senti uma forma, já bem conhecida. Eu tinha a chave. E eu sabia
como a usar, já que era a única que tinha conseguido sair antes.
“Tens de nos
ensinar a usar as chaves!”
Podia ouvi-las
à minha volta, mas corri para a rua. Corri pela rua. Corri através da rua. Eu
ia usar a minha chave antes de todo. Estava ansiosa por voltar. Estava ansiosa
por todas as coisas que ia poder fazer no Love Hotel.
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