O Trauma de Dóris Piedade
Terça-Feira
O doutor
pediu-me que escrevesse um diário, pelo menos durante um mês. O doutor
compreende o meu problema, mas quer que eu analise o problema dentro de mim e
eu não estava a conseguir e então ele disse-me “escreve um diário” e eu achei
bem, portanto estou a escrever. Perguntei-lhe “quantas vezes por semana devo
escrever no meu diário?” e ele respondeu “tantas vezes quanto quiseres, Dóris”,
mas eu perguntei “mas quantas exactamente é que tenho de escrever para perceber
o problema dentro de mim” e ele pensou um pouco e disse pelo menos duas vezes
por semana. Decidi escrever às terças e às quintas porque é quando tenho a
tarde livre na faculdade e os meus amigos não vão sair, então estou
completamente disponível para ligar o computador e escrever um bocado. Claro
que aí não posso jogar tanto, mas eu quero perceber o problema dentro de mim e
curar-me.
Para
o caso de alguém ler este diário (não é secreto, mas também não o vou por na
internet) se calhar convém dizer quem é que eu sou, para se perceber quem é que
eu sou: o meu nome é Dóris Piedade, tenho vinte e tantos anos, estudo
programação e tenho um problema. Comecei a ir ao doutor quando a mamã foi
internada, mas depois percebeu-se que o meu problema não estava relacionado com
a mamã e por isso continuei lá. A questão aqui é que eu não posso ser olhada
pelas pessoas. Eu não posso dar nas vistas, mas isso parece-me até uma coisa
normal, porque eu sou normal, eu sou igual aos outros, portanto não faz sentido
que olhem para mim, mas as pessoas olham e eu tenho medo e eu entro em pânico,
mas graças ao doutor e aos comprimidos já consigo lidar com isso melhor e posso
ir sair com os meus amigos.
A
mamã foi internada há muitos anos quando teve uma crise de qualquer coisa e
ameaçou o papá e mais outras tantas pessoas com uma faca de trinchar. Eu ia
visitá-la, mas depois de algum tempo percebeu-se que ela nunca mais me ia
reconhecer, então deixei de ir visitá-la e depois vim para a faculdade e vivo
sozinha e nunca mais a vi. Quase nunca vejo o papá, mas não faz mal porque ele
está sempre a criticar a cor do meu cabelo e sempre com medo que eu fique igual
a mamã e o tente matar com uma faca ou com outro objecto que esteja por aí à
mão de semear. Não, eu nunca vou ficar igual à mamã e tentar matar alguém
porque isso ia significar que tinha de ir à polícia e depois ao tribunal e
depois à televisão e toda a gente ia olhar para mim e eu provavelmente ia
morrer antes de se chegar a alguma conclusão, ia morrer de vergonha e de pânico
e se calhar era o ideal (morrer), mas eu ainda acho que o doutor me vai
conseguir ajudar e que vai correr tudo bem.
Não
há nada que me obrigue a ir jogar PS, até porque eu não jogo online para não
ter de falar com as pessoas, mas a única coisa que eu gosto (acho eu) é
terminar os jogos e o que estou a jogar agora é muito difícil, então vou parar
de escrever para ir jogar e tentar chegar a mais um save. Até porque eu não sei
escrever e sai tudo errado, mas espero que escrevendo consiga perceber o
problema, o problema que eu tenho, o problema dentro de mim. O doutor e eu até
brincamos com ele às vezes e dizemos que é “O Trauma da Dóris”.
Quinta-Feira
Hoje
os meus colegas quiseram ir almoçar todos juntos e disseram-me para ir, não sei
porquê, porque eles nem sequer são os meus amigos, e eu disse que ia porque se
dissesse que não ia eles iam falar de mim e dizer “a Dóris nem sequer vem
almoçar connosco, a Dóris é mesmo parva” e eu não consigo suportar a ideia de
que falam de mim e de que eu eventualmente poderia ser uma pessoa sobre a qual
todos falam. Não perguntei nada a ninguém, nem disse nada para ver se eles não
davam por mim, por isso só depois descobri que a ideia que eles tinham de ir
almoçar fora era ir comprar tortas Dancake no supermercado e um pack de
garrafas de Mini.
Ainda
bem, acho eu, porque eu vivo longe do meu papá e ele manda dinheiro todos os
meses e eu tenho de o poupar bem para pagar a renda e a comida, a renda também
não é assim tanta porque é só um T0, mas posso sempre poupar na comida, então
achei bem que fôssemos comprar tortas Dancake. Eu não queria torta, porque eu
não gosto muito de doces, preferia antes uma salada ou uma sandes de salmão,
mas tive medo que eles olhassem para mim e achassem estranho, tive medo que os
meus colegas depois dissessem “a Dóris é tão estranha, prefere comer peixe”,
então fui com eles para o corredor dos doces e depois disseram-me “Dóris, podes
ir buscar a cerveja?” e eu fui.
Os
meus colegas são simpáticos para mim quase sempre e com eles posso falar dos
jogos que jogo, que não posso falar com os meus amigos porque eles não percebem
isso e só querem saber de ir sair. Mas, mesmo assim, eu acho que eles me acham
diferente das outras pessoas e olham para mim com um ar estranho, mas graças
aos comprimidos consigo deixar que eles olhem para mim e, mais ou menos,
ignorar. Por isso, achei que não ia fazer mal separar-me um bocadinho deles
para ir buscar as cervejas, eles não iam fazer como as miúdas da escola que me
deixavam sozinha na casa de banho e depois desapareciam, eles não iam fazer
como as miúdas da escola que não esperavam por mim nos intervalos e acho que
eles até são boas pessoas, embora nunca possam saber do meu trauma. Por isso
quase nunca digo nada, para ter a certeza de que passo desapercebida e que me misturo
com eles. Também é estranho uma rapariga estar sozinha entre as aulas, por isso
tenho de me juntar a um grupo. Ainda bem que é um grupo que tem uma rapariga,
porque assim não sou a única rapariga no grupo. E ainda bem que o grupo não é
muito grande, porque assim ninguém olha para nós quando passamos na rua.
Fui
buscar as cervejas como me pediram, mas não correu como eu estava à espera,
porque deu um anúncio nos altifalantes do supermercado, na verdade era só para
chamar uma patinadora à caixa central, mas eu pensei que era para me chamarem a
mim, então comecei a entrar em pânico e as lágrimas escorriam-me pelos olhos e
eu tentava pará-las porque se a maquilhagem borrasse e se borrasse eu ia ficar
horrível e toda a gente ia olhar para mim. Então encostei-me aos congelados e
estive ali a apanhar com um bocadinho de fresco e a tentar acalmar-me e fazer
como o doutor me disse, “grounding” é como se chama, então procurei ouvir três
coisas diferentes, cheirar três coisas diferentes, tocar três coisas diferentes
e quando os meus colegas vieram ter comigo eu estava com um pacote de filetes de
pescada congelados na mão e eles acharam estranho e riram-se e eu quis morrer
outra vez.
Mas
não morri e depois comprámos as tortas que eles queriam e as cervejas e fomos
para o jardim e estivemos lá a conversar, bem, eles a falar e eu a ouvir e foi
divertido e agora estou em casa a escrever e daqui a bocado vou jogar, porque
ainda não consegui passar o nível.
Terça-Feira
No
Sábado fui sair com os meus amigos, como saio todos os Sábados. Costuma correr
sempre muito bem, porque por alguma razão as bebidas não me fazem bezana e
todos os meus amigos ficam bezanos e não se lembram de nada do que eu fiz ou
disse ou se sequer estive lá. Acho que só apanhei uma, só uma vez, que foi
quando bebi duas garrafas de vinho e depois vomitei tudo apesar de me lembrar
do que se passou sei que foi uma grande vergonha. Felizmente, fiz tudo sem que
ninguém desse por nada e fui vomitar e voltei e já estavam todos a ir embora.
Eles iam deixar-me sozinha, porque os meus amigos são assim, portanto tenho
sempre muito cuidado para não me afastar muito.
Os meus amigos
são todos muito parecidos uns com os outros e, felizmente, eu também sou
parecida com eles. Todos têm os cabelos coloridos como eu e discutem maneiras
de pintar e cortar os cabelos. Todos vestem de preto como eu e as raparigas
usam todas saias como eu. Se calhar eu não devia dizer “como eu”, porque na
verdade eu é que sou como eles, que é o que devia ser, porque eu devia ser
igual a toda a gente, é o meu sonho: ser igual a toda a gente, diluir-me no
meio de toda a gente e ninguém dar por mim.
Apesar de
tudo, as pessoas reparam em mim a toda a hora. No Sábado também estava lá o Pedro
e eu cada vez gosto menos do Pedro, embora ele diga que gosta de mim. O Pedro é
muito alto, então se eu andar só com ele toda a gente ai dizer “olhem aquele
casal tão diferente, olhem aquele par de jarras”. O Pedro não se importa com
essas coisas, mas ele também não sabe do meu trauma porque eu nunca lhe contei,
como aliás nunca contei a ninguém porque se contar vão todos ter pena de mim e
vão dar-me atenção. Só pensar nisso me deixa um pouco nervosa.
Tudo
teria corrido bem no Sábado, quando fomos sair, porque estava toda a gente
muito bêbada e ninguém reparou que eu só bebi uma imperial, portanto ninguém me
ia perguntar “Dóris, não queres beber mais nada?” nem ninguém ia dizer “és
mesmo fraca Dóris, não bebes nada!” Mas não correu tudo bem, porque quando
saímos do bar para ir apanhar o barco para casa reparei que estava um velho a
atravessar a rua e a olhar para mim. O grande problema é que quando entrámos no
bar, umas horas antes, eu tinha visto o mesmo velho a atravessar a rua e ele
olhou para mim da mesma maneira. Agora que penso nisso, talvez isto não faça
sentido, mas o que eu pensei na altura é que ele tinha estado à minha espera
para que, quando eu saísse do bar, voltasse a atravessar a rua para olhar
melhor para mim. Comecei a tremer e o Pedro agarrou-me e eu tremi mais porque
não quero que ninguém pense que sou especial por o Pedro gostar de mim, mas
depois reparei que os meus amigos não estavam a dizer coisa com coisa e foi um
alívio, porque soube que eles não estavam a pensar em mim.
Tudo
o que eu quero é que ninguém pense em mim. Porque eu sou igual às outras
pessoas, eu sou exactamente igual, só me visto de preto e tenho os cabelos às
cores para ser igual aos meus amigos e porque queria ser igual à Cláudia, a
Cláudia era minha amiga e era uma pessoa normal. Eu como também sou uma pessoa
normal, igualzinha às outras, fiquei igual à Cláudia. Normal. Normalóide.
Perfeitamente normal.
Quinta-Feira
Hoje saiu uma
expansão nova de um jogo que gosto, então fui ao centro comercial pedir para
reservarem, porque não tenho cartão de crédito e não posso comprar na net.
Gosto de ir ao centro comercial. Há lá tantas pessoas e todas são diferentes
umas das outras mas, no meio da confusão, parecem-me todas iguais.
É um dos
poucos lugares onde me posso diluir, desfazer no meio da multidão e deixar de
ser eu mesma, para passar a fazer parte de todos. Sei que no meio da confusão
ninguém vai reparar em ninguém e posso andar relaxada, ninguém me vai olhar,
ninguém vai olhar para mim, ninguém vai reparar se o meu passo vai certo com o
dos outros como faziam as miúdas da escola. Foi por isso que fiquei amiga da
Cláudia, porque conseguia acertar o passo com ela e brincávamos as duas ao
mesmo tempo e ela percebia-me e era tudo exactamente como devia ser. Ao lado da
Cláudia ninguém dava por mim e quando alguém reparava que eu estava lá ela
punha-se à minha frente e não deixava que me vissem. Mas depois de a mamã ser
internada ela foi para o Canadá, felizmente deixou-me com outros amigos dela
que também eram coloridos e vestidos de preto e tinham penteados como eu e
disse “com eles, ninguém vai olhar para ti” e sorriu e deu-me a mão uma última
vez e depois foi-se embora e eu nunca me despedi dela porque o aeroporto é em
Lisboa e o papá não me levou.
Às vezes penso
como seria bom andar com o passo acertado pelo da Cláudia no meio deste caos,
rodeadas de pessoas cheias de compras e sem nenhum objectivo sem ser o de andar
com o passo certo.
Esperei na
fila como toda a gente e senti-me igual a toda a gente. Reservei o jogo e
fiquei contente. Depois o Pedro ligou-me a saber onde é que eu estava e eu
pensei “devia deitar fora este telefone mas preciso dele para falar ao papá e
ao doutor”, mas não lhe disse isto, disse-lhe que ia para casa e ele perguntou
se podia ir lá ter mas eu disse que estava muito cansada, por isso ele não vem
e posso passar a tarde a jogar, porque entretanto cheguei a um nível novo que é
muito mais difícil do que o anterior e que tem um boss complicado no fim,
segundo o que tenho lido na net.
Terça-Feira
Fomos sair no
Sábado e correu tudo bem, desta vez não fomos a Lisboa, portanto cheguei mais
cedo a casa e consegui dormir bem. Acho que o doutor vai ficar contente por
saber que o meu pesadelo não tem aparecido e que os comprimidos novos têm
funcionado. Para que fique registado, o meu pesadelo é sempre o mesmo e
apareceu a primeira vez quando aconteceu aquilo com a mamã e é assim:
Estou com a
Cláudia e o papá eles começam a arrancar-me os cabelos todos. Não dói nada e os
cabelos saem às mãos cheias. Depois, eu como os cabelos todos, e sabem-me bem,
mas quando dou por mim estou na escola e todas as miúdas estão a rir-se a
sussurrar umas para as outras e eu oiço elas a dizerem “fodeu o papá, fodeu o
papá” e começo a gritar que é mentira mas os cabelos não me deixam falar e
sufocam-me e a única maneira de acordar é lançar um grito.
É bom viver
sozinha, porque assim ninguém ouve o grito.
No entanto, na
Segunda-Feira (portanto, ontem) aconteceu algo muito estranho que me perturbou,
apesar de não ter perturbado o suficiente para eu ter o sonho. Tinha ido à casa
de banho entre duas aulas da tarde e estava tudo bem porque os meus colegas
estavam a conversar do outro lado do corredor e não se iam embora. Mas quando
pus o sabonete nas mãos para as lavar, carreguei no botão da torneira e não
saiu água. Então comecei a pensar que ficaria ali para sempre com sabonete nas
mãos sem as poder lavar e sem poder tirar aquilo e ia ficar toda pegajosa e não
ia poder ir às aulas e senti que ia entrar em pânico, mas consegui pensar
melhor e fui experimentar outra torneira e essa já funcionou.
Foi um grande
alívio e os meus colegas olharam para mim de maneira estranha quando saí,
porque se calhar vinha a sorrir e eu tento nunca sorrir para não ficar nem
demasiado bonita nem demasiado feia, tal como uso maquilhagem por essa razão,
tal como tento não chorar, ou dar gargalhadas. Porque se a minha expressão
mudar podem dizer “afinal a Dóris é gira!” ou pensar “afinal a Dóris é mesmo
uma aventesma!” e eu não ia suportar que pensassem qualquer uma dessas coisas,
porque o que eu quero é ser exactamente igual a todos os outros.
Mas ficou tudo
bem, porque a aula seguinte era Álgebra e ninguém gosta de Álgebra, então
esqueceram-se de mim por causa da aula. Por isso é que gosto deste tipo de
aulas difíceis. Não sou muito esperta (e ainda bem), também não sou muito burra,
estas aulas para mim não são um desafio. São apenas uma forma de fazer com que
os outros se esqueçam de mim.
Quinta-Feira
Os meus amigos
quiseram ir sair ontem, apesar de eu sair tarde das aulas e de estar cansada e
querer jogar, mas eu não podia dizer que não, não fossem eles dizer “a Dóris é
mesmo croma, nem sequer vem sair aos dias de semana”. Então eu fui e eles ficaram
bêbados e eu fiquei a vê-los a cantar e a dançar de braço dado. Os meus amigos
se calhar não são mesmo meus amigos, não como a Cláudia ou o papá ou o doutor.
Bem, o doutor é um tipo diferente de amigo, porque é uma pessoa a quem pagamos
para ser nossa amiga, mas não interessa porque posso falar com ele das coisas.
Os meus amigos
estão sempre aos gritos e eu grito também para que ninguém pense que não estou
no grupo, mas na verdade são muito mais tímidos do que se possa imaginar. Não
conhecem mais ninguém e estão sempre uns com os outros, apesar de dançarem na
rua e escreverem frases anarcas nas paredes. Tímidos e rebeldes, é o que eu
acho. Eu também sou tímida, na medida em que gostaria de viver dentro de uma
bolha. Uma bolha de titânio, opaca, para que me tornasse invisível perto deles,
em que ninguém me tocasse, ninguém falasse comigo, ninguém desse por mim,
ninguém nem nada. Nada.
Só vou sair
com eles para não dizerem nada sobre mim. Não sei se dizem alguma coisa do
género “a Dóris é mesmo esquisita” quando não estou com eles, mas se estiver a
maior parte do tempo com eles isso significa que não podem dizer nada, pelo
menos à minha frente.
Também estava
lá o Pedro e ele deu-me a mão. Acho que os meus amigos pensam que somos
namorados, mas não somos porque eu não gosto dele, apesar de ele dizer que
gosta de mim e aparecer na minha casa.
Terça-Feira
No Domingo o
Pedro apareceu na minha casa. Disse que me queria ver, mas eu sei o que ele
quer quando vem a minha casa. Quer foder, mas ele diz que é “fazer amor”, mas
não pode ser porque eu não o amo, eu não gosto dele. Depois, quando ele está em
cima de mim eu não digo nada nem faço nada, só estou com os olhos abertos a ver
o seu corpo quase sem pêlos e depois lembro-me daquela vez em que estive com o
outro e não disse nada também.
Parece que já
foi há mil anos, numa época em que eu era um neanderthal, mas acho que foi há
menos tempo do que me parece. Já não me lembro bem como ele se chamava,
Gonçalo, Bruno?, porque o doutor me deu comprimidos para esquecer. Mas ainda me
lembro do meu pavor, que não podia dizer que não porque ele podia dizer às
outras pessoas “a Dóris é mesmo parva”, mas porque não disse que não ele disse
aos outros “a Dóris é mesmo puta” e lembro-me que ele dizia “tás a gostar? Tás a
curtir?” e eu não dizia nada porque não sabia se tinha de dizer alguma coisa ou
ficar calada, era a primeira vez que fazia aquilo e se não fizesse os meus
amigos gozavam comigo e eu não ia suportar isso.
Mas não
suportei também o facto de aquela pessoa me ter agarrado e penetrado e feito
mal à minha cabeça, não aguentei isso e depois tentei morrer, que era o melhor
que eu podia fazer, porque me sentia partida, sentia que toda a gente olhava
para mim na rua e comecei a ouvir vozes que diziam puta, puta, puta.
Com o Pedro é
quase a mesma coisa, mas ele diz que gosta de mim e toda a gente pensa que
somos namorados, então eu deixo que ele venha e não digo que não para que
ninguém diga nada sobre mim ou sobre ele. Só sei que enquanto ele está aqui não
posso jogar o meu jogo, nem estuda aquilo que preciso de estudar e tenho de
ficar ao pé dele e ver um filme enquanto ele fuma cigarros de enrolar e ganzas
e eu também não digo que não quando me oferece, apesar de não gostar.
Depois de ele
se ir embora pensei em morrer outra vez.
Quinta-Feira
Eu nunca digo
nada a ninguém, mas às vezes gostava mesmo de discutir assuntos com as pessoas,
com os meus amigos ou com os meus colegas, ou até mesmo com o Pedro, mas tenho
medo que me achem estúpida e digam “a Dóris tem ideias mesmo idiotas”. Por
exemplo, porque é que no jogo das sete diferenças, a imagem diferente é sempre
a que está por baixo, ou à direita, e nunca a que está por cima ou à esquerda.
Como eu: porque é que eu é que sou diferente e não são os outros diferentes de
mim, porque é que são os outros que olham para mim e não eu que olho para os
outros. Se calhar é esse o meu problema, mas o meu trauma não me deixa olhar
para os outros, porque tenho medo que os nossos olhares se cruzem e eles me
façam mal e depois eu comece a chorar.
Outra pergunta
que tenho, é porque é que o espaço se chama espaço. Será porque o espaço, o
espaço sideral onde estão as estrelas e os planetas, é espaçoso? Porque há
muito espaço entre cada objecto que orbita em volta de outro objecto? Tal como
há um espaço infinito, um espaço demasiado espaçoso, entre mim e os outros,
entre mim e uma vida em que ninguém olhe para mim.
Tenho de
perguntar estas coisas ao doutor. Não sei se é suposto mostrar-lhe este diário
ou não.
Sábado
Tenho sempre
comigo, dentro da mala, um número de comprimidos suficientes para que possa
morrer. Morrer em qualquer ocasião. Mas depois penso… Se eu morrer na estação
do metro, vou causar problemas a toda a gente. Se eu morrer na ponte, vou
causar problemas a toda a gente. Se eu morrer em casa e ninguém me encontrar,
vou começar a cheirar mal e têm de desinfectar o prédio.
Nem na morte
deixo de causar problemas.
Mas, se
morrer, se calhar já nada disso vai importar.
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