A Transformação
Naquela
altura, pensava realmente que ia morrer. Quando percebi onde me encontrava, o
desespero inicial começou a tomar a forma da constatação de que, realmente, ia
morrer. Quando acordei não sabia se era dia, se era noite, a escuridão
rodeava-me por todos os lados. Quando me tentei levantar, percebi que não
podia. A posição horizontal era a única permitida. Palpei o que me rodeava,
para constatar que era madeira. Madeira polida, cheiro a terra.
Estava
numa caixa.
Gritei,
bati-lhe com todas as minhas forças, mas nada me respondia, nada acontecia. E o
cheiro a terra, o cheiro a terra tão forte, rodeando-me por todos os lados.
Demorei algum tempo, mas depois compreendi: estava enterrado. Tinham-me
enterrado vivo.
Certamente
que tinha sido o marido da minha amiga. A minha última memória antes deste
universo de escuridão era uma discussão com este homem, que me tinha atacado
com um pau. Provavelmente, tinha desmaiado e ele aproveitara-se para me colocar
dentro desta caixa, um caixão improvisado, enterrando-me. Como me poderia
salvar? Quantos palmos debaixo da terra estaria eu? Será que se gritasse bem
alto, alguém viria para me desenterrar? Será que se usasse todos os meus
músculos conseguiria romper a barreira que me separava da luz do dia? Tentei
tudo isso, tentei, juro que tentei. Mas nada funcionou. E o ar começou a
faltar-me, portanto decidi ficar quieto e aguardar a morte. Ela iria chegar.
Brevemente? Seria brevemente? Ali em baixo não havia tempo. Apenas escuridão.
Depois,
vieram as formigas. Sentia as suas picadas por todo o corpo, comiam-me vivo.
Estaria eu ainda vivo? Contorcia-me no pouco espaço que me tinha sido atribuído,
cerrava bem os dentes para que elas não me entrassem na boca. Mas comeram a
minha pele, mastigaram a minha carne, levaram pedaços de mim para a grande
rainha instalada nos seus túneis.
Depois
vieram os vermes. Eu não os podia ver, mas sentia-os alimentando-se do meu
abdómen. Podia perceber como se movimentavam, mas deixei-me estar parado. A
posição que encontrei era a mais confortável possível. Deitado, braços ao lado
do corpo. Depois, quando tentei levantar um braço para afastar os vermes,
percebi que já não me podia mexer. Podia fechar a mão e sabia que algo estava
nela. Algo sólido, duro, redondo. Uma semente. Por isso, deixei-me estar e
pensei “que sirva o meu corpo para alimentar esta semente”. Afinal, já estava
morto de qualquer forma. Nunca ninguém me iria buscar. Mesmo que viessem,
encontrariam apenas um pedaço de carne roído pelos insectos.
Os
bichos tinham comido as minhas pálpebras e nunca mais poderia fechar os olhos.
A dor era indizível, o sofrimento não cessava por um instante. Mas eu sabia que
já tinha morrido e que, portanto, tudo iria acabar mais cedo ou mais tarde. O
meu corpo serviria para a semente. Passei a amar aquela semente e, enquanto
tive forças, sussurrava-lhe belas palavras. “Vais ser uma grande árvore, amiga”,
“Vais sair daqui um dia destes”, “Vais poder ver a luz, eu nunca mais vou ver a
luz.”
Depois
calei-me e não sei quanto tempo passou.
Mas
quando dei por mim, podia respirar de novo. De uma forma diferente, mas era
algo como respirar. O ar rodeava-me e a luz do sol inundava tudo à minha volta.
Estava cá fora? Acima da terra? Como poderia ter acontecido isto? Tentei
observar o que me rodeava, mas via tudo de forma diferente. Não olhava para
baixo nem para cima. Porque não tinha olhos, tinha deixado de ter olhos, com
pálpebras ou pestanas. Não sentia mais o cheiro da terra. Mas podia sentir a
terra debaixo de mim, tão confortável como o útero materno. Foi só depois de
várias noites que compreendi que a semente tinha crescido e brotado da terra. E
que, de alguma forma, a minha alma humana, a minha compreensão pessoal, tinha
sido transferida para este novo corpo. Agora, eu era uma planta.
Mais
uma vez, desesperei. Estava vivo, estava livre da terra, mas não me podia
mexer, não podia encontrar o marido da minha amiga para me vingar, não podia
encontrar a minha amiga para a beijar, não podia ver, nem cheirar, nem comer,
nem andar, nem ouvir, nem estalar os dedos dos pés. O meu corpo estava morto e
sem o meu corpo não podia fazer nada. “Porque não me mataste, deus, em vez de
me transformares nesta criatura obsoleta?”, perguntava.
Mas
o tempo passou e eu compreendi que ser árvore é um estado quase tão bom como
ser homem. Passei a apreciar muitas outras coisas que nunca havia notado antes.
Para começar, tudo o que eu precisava de fazer era alimentar-me e crescer.
Alimentava-me da terra, da água, do sol. Passei a apreciar os longos dias de
Verão da mesma forma que apreciava as grandes tempestades com suas trombas de
água. Não havia mais tempo, apenas as estações que mudavam. Podia sentir a dor
quando o vento me arrancava folhas, mas podia também dar-me ao luxo de não me
importar. Porque tudo o que eu precisava de fazer era crescer. Não podia falar,
mas tinha uma vontade própria que me fazia tentar comunicar com o mundo em
redor. O vento ajudava-me, os pássaros ajudavam-me, as abelhas ajudavam-me.
Vinham alimentar-se das minhas flores e dos meus frutos e assim levavam as
minhas mensagens. Para quem? Não sei. Talvez outras árvores. Não havia mais
nenhuma à minha volta que me fizesse companhia.
Descobri
a linguagem das plantas, conversando com a relva e com as florzinhas térreas
junto ao meu tronco. Podia falar com o musgo e com os líquenes que se
alimentavam da minha casca. As nossas conversas eram muito diferentes das que
um homem teria com outro homem, ou com uma mulher, ou com qualquer criatura
animada. Porque falávamos sobre como poderíamos crescer cada vez mais, ser mais
fortes, libertar mais oxigénio, ser mais verdes. Falávamos sobre as nossas
chuvadas preferidas e recordávamos os mais belos dias de sol, que tinham sempre
brisas agradáveis. Falávamos daquelas vezes em que uma abelha se alimentou das
nossas flores.
Sendo
uma árvore, nunca havia momentos tristes ou menos bons. Todos os momentos eram
iguais, porque me alimentava do que me rodeava e tudo era agradável. Comecei a
esquecer do que tinha sido a minha vida enquanto homem. E quanto menos me
recordava do passado e de todo o sofrimento, mais as minhas raízes se expandiam
e eu crescia, obedecendo ao desígnio oferecido a todas as plantas.
Era
feliz. Não há nenhuma árvore que não seja feliz.
Neste
novo corpo, também não conseguia perceber o tempo da mesma forma que os homens.
Os dias, os meses, os anos, não era necessário conta-los. Sabia que a estação
ia mudar pelas ligeiras diferenças na humidade, na temperatura, na luz. Como eu
me havia tornado numa árvore de folha permanente, não havia muitas diferenças
para mim entre o Inverno e a Primavera. Pássaros traziam mensagens de outras
árvores, bem longe, cujas folhas caíam todas quando a temperatura descia. Eu
calculava que fosse doloroso, mas compreendia também que para uma árvore todas
essas coisas são apenas uma transformação e o sinal de que estamos a fazer tudo
bem, para crescer, para não murchar, para não morrer.
Por
isso, não sei quanto tempo passou desde que eu havia sido enterrado vivo e o
momento em que voltei a ver pessoas. Uma tarde, senti algo rasgando a minha
casca, uma dor aguda que me recordou a vez em que havia sido consumido pelas
formigas. Procurei saber o que se tinha passado. Era um casal de pessoas, um
rapaz e uma rapariga, humanos, que escreviam as suas iniciais no meu tronco.
Apesar da dor, senti-me bem. Afinal, eles tinham-me escolhido para simbolizarem
o seu amor. Eu já não recordava bem o que era o amor, mas sabia que era uma
coisa boa.
No
entanto, há tanto tempo que não via pessoas que quis saber como eram. Portanto,
procurei vê-las. As árvores não têm olhos, mas é como se um desses órgãos
existisse em cada ramo, em cada folha, em cada broto. Podemos ver tudo o que
nos rodeia, apenas não nos interessa. Naquele dia, interessava-me ver as
pessoas, portanto deixei cair uma das minhas folhas mais velhas à sua frente. E
quando a folha passou, vi as suas caras. Recordações assolaram-me e fiquei
espantado. A rapariga tinha os olhos do homem que me havia enterrado vivo. E o
nariz da sua mulher. Aquela que havia sido minha amiga. Mas ela era mais velha
do que eles algum dia haviam sido. Quanto tempo tinha passado? Dez anos? Cem?
Duzentos? Aquela era, provavelmente, a descendente do homem que me tinha feito
tanto mal.
Por
momentos pensei que finalmente poderia concretizar a minha vingança. Como me
poderia vingar, enquanto árvore? Deixar cair um dos meus pesados ramos em cima
da cabeça destes jovens, para que o seu sangue alimentasse as papoilas que
cresciam debaixo da minha sombra? Mas veio uma brisa que trouxe pólens
variados, de terras longínquas, e esqueci-me de tudo, mais uma vez. Afinal, de
que serviria tirar a vida a uma pessoa que nada me tinha feito, sem ser um
rasgão na minha casca? Tal como eu estava vivo, tal como eu tinha a bênção de
ainda poder respirar e crescer, devia deixá-los respirar e crescer, para que um
dia voltassem para debaixo da minha sombra e fossem, mais uma vez, felizes.
Eles
foram-se e os tempos continuaram a movimentar-se, sem que eu desse por eles. À
minha volta fizeram construções. Colocaram bancos e brinquedos para as
crianças. Escorregas, baloiços, essas coisas. Puseram uma vedação delimitando o
espaço à minha volta, destruindo alguma da relva no processo. Mais tarde,
apareceu uma criança muito pequena com os olhos do homem que me tinha enterrado
vivo. Filho daquela rapariga que tinha escrito na minha casca?
Nada
mais interessava. Nada mais interessa. Tenho de me esquecer do que foi ser
homem. Porque agora sou uma planta. Deixará de haver passado, tal como não há
mais presente e nunca houve futuro. Farei como todas as outras plantas e
crescerei, aproveitando o sol e a água, a terra e as abelhas.
Eu
sou uma árvore num jardim. A árvore que está no teu jardim. Estou sempre
parada, é verdade. Mas sou feliz assim.
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