One of Alexandra Levasseur's Tormented Women
A Princesa do Reino de Saskia
Não me
lembro de ser criança. Procuro nos meandros da minha memória, buscando alguma
recordação entre as circunvalações do meu cérebro, mas as minhas lembranças são
sempre as mesmas. As festas, os bailes, a minha irmã. As festas, os bailes,
mais uma vez a minha irmã. Por vezes, os meus pais. Mas eles não são mesmo os
meus pais. Ela não é mesmo a minha irmã mais velha. Mas não me lembro de nada
antes disso. Alguma coisa impede a minha memória. Quem seria a minha verdadeira
família?
Sei que
durante muito tempo, pensava realmente que o rei e a rainha eram os meus pais.
Pensava realmente que eu era uma princesa. A princesa mais nova, nunca uma
potencial candidata ao trono enquanto a minha irmã existisse, mas ainda assim
uma princesa. A bela e platinada princesa do Reino de Saskia. A irmãzinha da
encantadora pretendente do Reino de Saskia. Mas um dia, isso recordo, a minha
criada de quarto contou-me que não. Na verdade eu tinha sido adoptada a uma
família pobre, camponeses?, comerciantes arruinados?, mendigos?, por um
capricho da verdadeira princesa. Desde muito pequena que ela é assim: tudo o
que pede lho é dado. E quando ela pediu uma irmã, deram-lhe uma. Escolheram a
criança mais loira do reino, para parecer que fazia realmente parte da família.
E educaram-na como princesa, para parecer que era mesmo uma. Mas, no fundo, não
passava de uma pobre camponesa, arruinada ou mendiga, tomada sob a áurea asa da
caridosa família soberana, sob a tutela de uma irmã ideal, aquela que nunca
poderia ter tido se se mantivesse na sua origem.
Mas por
vezes penso que seria melhor nunca ter saído de lá. Talvez aí recordasse o que
foi ser criança.
A vida
no palácio do Reino de Saskia é um suceder de dias que se repetem, com poucas
variações entre eles. Todos os dias devo brincar com a minha irmã mais velha.
Já não temos idade para brincar, então o que faço é assistir às suas provas de
vestidos. Experimenta dezenas, todos os dias, de todas as cores que a retina
humana consegue detectar. Os que gosta serão usados, todos, nos bailes do fim-de-semana.
Os que não gosta são queimados, numa grande fogueira no pátio. Gosto de ver a
fogueira. Sento-me à janela e vejo o fumo a subir, imaginando que sou eu
própria nas chamas, que eu me transformei no fumo e que depois serei uma nuvem.
Leve, branca, felpuda, uma nuvem que depois se vai transformar em chuva. Uma
nuvem livre, como todas as nuvens. Mas a minha mente foi talhada com o cinzel
do dever e eu sei que enquanto a minha irmã mais velha for viva, não poderei
deixar de brincar com ela aos vestidos e aos bailes.
Todos
os fins-de-semana temos bailes. Ou festas. Sexta, Sábado, Domingo, entre as
dezanove horas e as sete horas do dia seguinte. Sou obrigada a ficar todas
essas horas no meio das pessoas que, desinteressadas, fazem passos de dança
para alegrar a verdadeira princesa. Muitas pessoas já me disseram em segredo,
muitas pessoas contam-me segredos quando a minha irmã está distraída. Ninguém gosta
de vir às festas, nem aos bailes, porque são monótonos e aborrecidos. A minha
irmã dança com todos os homens presentes e a mais ninguém é permitido dançar.
Os meus pais, o rei e a rainha, observam tudo dos seus tronos elevados, bebendo
um sumo de uva semelhante a sangue. Sorriem, pois a sua menina está feliz. Mas
para todos os outros é um sacrifício. Quem recebe um convite tem de vir. Todos
os homens que recebem o convite têm de dançar com a princesa do Reino de
Saskia. Mas, segundo dizem, ela dança muito mal e pisa os pés de toda a gente.
Posso
dizer que nunca me passou pela cabeça dançar com alguém. Mas um dia, um novo
convidado apareceu e esse, sem saber das regras, convidou-me para dançar. A
minha irmã mais velha apareceu por trás dele e gelou-me os movimentos com o seu
olhar marítimo. Agarrou-o pelos ombros e começou a dançar com ele,
explicando-lhe resumidamente as regras daqueles bailes. Eu fiquei a ver, mas
não me esqueci do homem. Parecia ser uma pessoa simples e muito diferente de
nós. Os seus cabelos eram negros, quase azuis, os seus olhos eram negros, quase
castanhos, a sua pele era branca, quase negra de tanta palidez por cima das
veias. Enquanto dançava com a princesa do Reino de Saskia olhava para mim, uma
e outra vez. Não, não me poderia esquecer dele. Mas não era competência de uma
irmã mais nova fitar o aspecto de um homem. Não. Não era competência dela tentar
ver a alma de um homem. Mas sinto que nessa altura ele viu a minha, saindo pelo
topo da minha cabeça.
Uns
dias depois, os meus pais chamaram-me à sala do trono. Sentados nos seus
assentos, rebuscados entre os detalhes da madeira, disseram-me que eu me ia
casar. Como?, perguntei eu. A minha irmã mais velha, depois de falar com o
homem da pele pálida, decidiu que eu me ia casar. Ela queria ver uma grande
festa de casamento. Por isso, no próximo fim-de-semana, as três noites iam ser
em minha honra e eu seria autorizada a dançar. O meu coração parou por um
momento, mas logo voltou a bater. Quem seria aquele homem misterioso? Será que
eu poderia gostar dele? Eu não sabia gostar de nada, a única coisa que
apreciava era o fumo da fogueira. Tinha medo, mas no meio do receio podia ver
um pirilampo que me guiava até à liberdade que tanto ansiava. Talvez fosse essa
a solução.
Esperei
pelo baile seguinte sem me conseguir ter quieta, nem na cama, nem nas cadeiras,
nem à hora do jantar. A minha irmã mais velha impedia-me de comer tudo aquilo
que queria, dizendo que eu tinha de estar magra para os vestidos me servirem.
Ela escolheu-os, todos vestidos verdes que ela não queria mas que tinha salvo
da fogueira para me dar. Com este gesto ela pensava ser a mais caridosa das
princesas, enquanto que eu seria apenas uma mísera aproveitadora da sua boa
vontade. Não pensei muito nisso. Tudo o que queria era experimentar dançar com
aquele homem, o homem da pele pálida.
Quando
chegou o dia, descobri que ele se iria sentar ao meu lado no jantar. Assim
poderia falar com ele antes da dança! Ele estava ao meu lado direito, eu ao lado
direito da rainha, que estava do lado direito do rei, do lado direito da mais
velha das princesas do Reino de Saskia, sentada no centro da mesa, presidindo
as hostilidades como sempre. Todos estavam distraídos quando o homem me começou
a explicar, muito baixinho, ao ouvido, a verdadeira razão pela qual tinha
vindo.
Ele na
verdade fazia-se passar por nobre estrangeiro, quando a realidade era que ele
fazia parte de uma célula revolucionária que procurava derrubar a família real
do Reino de Saskia. Tudo se iria passar nessa noite, mas ele iria salvar-me,
pois todos sabiam que eu não era uma verdadeira princesa. Poderia juntar-me à
sua revolução e ajudar a criar um novo governo, um governo sem desperdícios,
sem festas, sem raparigas mimadas que tinham tudo o que queriam, até mesmo uma
irmã. Depois de me contar isto, os seus lábios finos contorceram-se num sorriso
incompleto. Eu podia ver a minha cara reflectida nos seus olhos. A minha cara
irradiava uma espécie de esperança, um sentimento completamente novo que eu
nunca tinha experimentado. O sentimento de uma potencial liberdade, a
perspectiva de me transformar em fumo. Sorri também. Tudo ia correr bem.
Chegou
a hora da dança. O homem pálido perfilou-se ao meu lado; a minha irmã e o pai
do outro lado; a rainha mais atrás, no centro. Começámos a dançar os passos do
minuete encantatório que simbolizava o início das festas. Eu e o homem, a minha
irmã e o pai e a rainha sozinha, fingindo que tinha um par, balançando o seu
corpo gorduroso todo enfeitado de brilhantes coloridos. Eu sentia-me envolvida
num abraço quente, num amor profundo, como se finalmente tivesse reencontrado a
minha família perdida há tanto, tanto tempo… Mas à minha volta sentia os frios
olhos da minha irmã, sempre pairando sobre mim como um abutre incorpóreo. No
final da dança, ela puxou-me pela mão para trás de uma cortina. Sorrindo, disse
Já não
te vais casar. Não quero.
Depois
levou-me até ao meu quarto e trancou-me lá dentro. Mas eu não me sentia abalada
de nenhuma maneira. Porque sabia o que o homem pálido me tinha dito: devia
mudar de roupa e esperar no meu quarto com a janela aberta. Ele viria
buscar-me. Troquei o vestido por umas calças de ganga e uma camisa, prendi o
meu cabelo num rabo-de-cavalo. Cheguei a considerar cortá-lo, mas não tinha uma
tesoura no meu quarto. Os objectos cortantes eram sempre levados pelas criadas
quando chegava a noite. Só nessa altura percebi que era para me impedirem de
alterar o meu corpo de alguma forma, quer com marcas quer com a própria morte.
Eles sabiam que eu nunca poderia ser feliz ali. Mas provavelmente sabiam que ia
chegar o dia em que eu ia ser nuvem.
Esse
dia chegou. O homem pálido encostou um escadote de metal à janela e disse-me
para descer. Depois entrámos no seu jipe, onde outros companheiros o esperavam,
e fomos até ao acampamento dos revolucionários. Lá ardiam fogueiras, lá havia
famílias vestidas com calças, com cabelos cortados, com animais ao colo. Lá as
pessoas tinham olhos verdes, castanhos e negros, como se fossem as nossas
criadas. Mas não eram criadas, porque eu agora era parte deles. Sentaram-me
junto a uma fogueira e começaram a cantar-me canções sobre a sua luta. Uma
delas era a minha história. A menina que tinha sido raptada para ser o bicho de
estimação da princesa. Tudo aquilo me divertia. Cheguei mesmo a dançar,
abraçada ao homem pálido.
Subitamente
chegou um grande camião com uma jaula na parte de trás. Lá dentro vinha a
família real do Reino de Saskia, com os seus fatos de baile esfarrapados,
chorando com os olhos vidrados. Para eles, qualquer coisa fora da sua realidade
era como viajar para um planeta cheio de monstros carnívoros. Os
revolucionários ordenaram-lhes que saíssem do camião e perguntaram-me o que
fazer com eles. Disse-lhes para os sentarem ao meu lado. Olhavam para mim como
se nada fizesse sentido, como se eu tivesse deixado de ser a mesma pessoa.
Talvez tivesse…
Um
deles disse “Trouxemos a comida da festa!” e começaram a dispô-la à nossa
frente, ainda nos pratos de porcelana oriental do palácio. Eu estava cheia de
fome, portanto peguei nos talheres de prata e comecei a comer de tudo um pouco.
A minha irmã mais velha e os outros estavam amarrados e olhavam para mim com um
ar incrédulo. Finalmente, cheguei à sobremesa. Era um pudim, um pudim flan
enorme. Tirei um pedaço com o garfo e a minha irmã começou a gritar
Esse é
o meu pudim preferido! Não o podes comer! Dá-me! Dá-me!
Os seus
gritos pareciam vir do fundo do seu estômago, cheios de ácido, envolvidos em
lágrimas de raiva e sal. Debatia-se, cara toda vermelha, para se libertar das
cordas que a amarravam. Rebolou-se sobre si própria, estragando o vestido, sem
conseguir respirar por causa do ranho que lhe escorria das narinas, gritando
que queria o pudim, que o queria, que não me deixava casar se eu não lho desse.
Comi
uma dentada e atirei o resto para a fogueira à minha frente. Vi o fumo cinzento
a desfazer-se na direcção da lua. Ia transformar-se numa nuvem. Eu estava
feliz. Pela primeira vez na vida, espreguicei-me sem pedir licença e sorri para
o céu.
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