Illustration by Mrzyk & Moriceau
O Meu Parasita
Oh, que
belo campo de férias! Estende-se a relva em espaços divididos por delicadas
estatuetas, mármore, pedra, pedras com formas humanas, pedras com formas
geométricas, pedras com formas de pedra. Corro pelas escadas abaixo, ténis
ligeiros, ligeiramente rotos, cabelos leves levantando-se com o cheiro das
flores. Há muitos recantos escondidos e os outros adolescentes, vestidos com
seus calções de lycra azuis e suas t-shirts soltas, reúnem-se neles para
conversar e para se beijarem. Encontro vários grupos, mas continuo o meu
caminho, afagando uma estátua, cumprimentando uma ave, não são estes os meus
recantos, não são para mim estes beijos.
Esses
esperam-me noutro sítio.
Estaco.
Encontro um grupo de jovens muito loiros e bronzeados, suor encharcando-lhes os
sovacos, um aroma selvagem e estranhamente limpo. “O que fazes aqui”,
perguntam-me, todos cheios de sorrisos, dentes muito alinhados e brilhantes,
pessoas tão perfeitas. “Estou à procura dele”. Eles soltam gargalhadas, como se
eu tivesse sido apanhada no centro de alguma fofoca ardente. Sugerem ir até à
piscina, pois algo especial se está a passar lá.
É uma
piscina rectangular, não muito grande, ladeada por mosaicos decorados, tudo em
tons de branco e pedra, perfeitamente encaixados numa pequena depressão do
terreno. À sua volta, tudo é verde de relva aparada e folhas saudáveis. Aqui
não há flores. Todas as plantas são escuras e a água clorada da piscina é tão
azul… Mas reparo que algo de estranho se passa. Os jovens sentam-se daquele
local privilegiado para ver os acontecimentos, mas eu aproximo-me. Dentro da
piscina está uma enorme manta, uma raia crescida, que ocupa quase todo o espaço
de uma ponta à outra, transversalmente. Por baixo dela, está um hipopótamo,
menor mas com enormes presas e a mucosa rosada, cheia de sangue. Lutam um
contra o outro, a manta abanando as suas asas cartilaginosas, o hipopótamos
rugindo e abrindo a sua boca flácida para morder o outro animal. E tudo parece
estar a correr bem para o hipopótamo. Não acho mal. Gosto de mantas. Gosto de
raias. Gosto de uma boa posta grelhada. Posta, posta, hoje vamos jantar raia.
A manta
parece vencida e flutua na água, como um grande sinal de somar. O hipopótamo
sai da piscina e sacode-se da água. Ver esta luta foi como uma purificação. A
água salpicando, molhando tudo à sua volta, o sangue escorrendo dos arranhões
dos animais, os rugidos, o suor, o suor… Mas não está tudo bem. A manta, que
parecia morta, ergue-se com as suas barbatanas laterais, um voo impossível, um
voo que a afasta da sua condição aquática e a coloca numa outra categoria
filogenética. A dos monstros. Com uma das barbatanas, envolve o hipopótamo e
atira-o para dentro de água. É a sua morte. Não vai haver posta, não vai haver
posta, o sangue do paquiderme é tudo o que resta na piscina e o meu umbigo
começa a doer, dói tanto, algo nasce dentro dele e expele o seu botão para o
exterior, não, o meu umbigo!
“Dói-me
o umbigo!”
Corro
de volta para junto dos jovens. Uma rapariga com os cabelos muito compridos e
saudáveis levanta a minha t-shirt.
“Estiveste
junto da água. Agora tens o parasita.”
O
parasita? O que é o parasita? Ninguém me sabe explicar e dançam em roda, à
minha volta, sorrisos inocentes, vais morrer, vais morrer, vou morrer, ninguém
me salva? Porque é que ninguém me salva? Quero sair dali, correr para longe,
mas o círculo aperta-se à minha volta. No meio deles está o monitor do campo de
férias, um homem muito alto e de cabelos negros, com um aspecto detestável e um
sorriso encantador.
“Eu
tiro-te o parasita.”
Vamos
para a casa da piscina, onde estão guardadas todas as bóias e outros
flutuadores. Ele deita-me em cima de um colchão de borracha, cheio com ar, um
colchão vermelho com um desenho de um dálmata. Levanta-me a t-shirt e posso ver
a minha barriga, pálida, gordurosa, rotunda. O umbigo cresceu, está todo cá
fora, e num dos lados sai a cabeça de um pequeno verme pegajoso. O monitor pega
numa espingarda e dá uma gargalhada.
“Levanta
o braço!”
Eu
levanto o braço. Ele baixa a minha manga e aponta a espingarda à minha axila.
Fecho os olhos com força e oiço o tiro. Estou livre do parasita. Voou para
longe com a pressão da bala, que atravessou todos os meus vasos sanguíneos
desde o plexo braquial até ao umbigo. Mas quando abro os olhos, descubro que
ainda estou dominada pelo bicho. Porque agora é Inverno e estou na misteriosa
estação dos ferries que nunca vão para o outro lado do rio. Estes ferries
navegam, mas voltam sempre para o seu ponto de partida.
As
minhas roupas mudaram, certamente obra do parasita. Estou com o sobretudo
comprido, impermeável, as botas quentes. Uma chuva miudinha não me pode
atingir, porque estou bem agasalhada. Entro no ferry e vou até ao bar.
Subitamente, vejo-o. Lá está ele, era ele quem eu procurava para beijar, era
ele quem eu procurava no campo de férias! Mas o que faz ele aqui? Só eu posso
apanhar o ferry, pois o ferry vai para minha casa. Falamos um pouco e ele
segue-me, estamos em casa. Começa a rir-se quando acendo o ecrã do computador.
Vejo as nossas fotografias. Ele foi apagado. Não está em nenhuma. E o riso dele
é histérico, nascendo de dentro do abdómen, saindo pelo umbigo. Choro, grito, foi
tudo mentira?
“Foi tudo mentira!”
Foi só
um jogo? Quem é esta mulher? Quem é esta mulher feia ao teu lado na fotografia?
Sou eu? Esta não sou eu!
“Sempre
foi um jogo.”
Encostado
contra o vão da porta, o riso continua a sair-lhe do umbigo. Está alto, está demasiado
alto. Os seus olhos são largos e brilham, verdes como jóias, injectados de
sangue. Uma serpente, uma ratazana, ele não é ele, ele é o parasita e consome-me!
Corro
para o armário da roupa e tiro de lá uma lata de feijão preto. Abro a lata e,
às mãos cheias, como todo o seu conteúdo. Mas não é o suficiente. Onde estão os
meus comprimidos? Preciso deles todos, preciso de todos ao mesmo tempo. Coloco
a mão no armário e tiro de lá uma garrafa de vodka. Começo a bebê-la, não sabe
a nada, é vodka do supermercado, tudo o que eu quero é bebê-la toda e vomitar.
Vou vomitar o feijão, vou vomitar o parasita, vou vomitar tudo. Vou vomitar a
alma. Talvez se beber a garrafa toda consiga vomitar.
Talvez
se beber a garrafa toda consiga acordar.
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