Scott Naismith
O Fim do Mundo
Quanto
tempo já passou desde a última vez? Da última vez que aqui estivemos os quatro,
desde a última vez que foi o fim? Sim, já se devem ter passado muitos anos.
Estive comatosa, um sono profundo em que fingi ser uma pessoa normal, gerações
seguidas de gerações a ser uma pessoa normal. Fui a primeira a chegar, a minha
cadeira continua exactamente igual. Uma cadeira de plástico verde, com a mesa a
condizer ao lado. Este ano esperavam-me algumas litrosas numa caixa cheia de
gelo. É sempre preciso um pouco de gasosa para acompanhar as festividades.
Os
outros acabaram por chegar, vindos do portão enferrujado que se abre para nós
do lado esquerdo do campo. O campo continua igual, uma grande extensão de erva
verdejante que nunca é cortada. Do lado direito, a rede. Uma rede altíssima,
que corta as nuvens no céu. Do outro lado? É o precipício. Os outros chegaram e
sentaram-se nas suas cadeiras. São tantas vezes a fazer isto que já nem nos
cumprimentamos com os dois beijinhos. Só um aceno e chega. Depois começa o fim.
Primeiro chegam os nossos amigos desta última vida. Temos de os avaliar e
salvar. Desta vez a avaliação é ainda mais simples: grupos de pessoas são
enviadas para dentro dos quatro quartos à nossa frente, quartos poliédricos, paralelepípedos
sem cor. Só nós podemos ver o interior. Não tem nada. Enfim. Nos quartos, as
pessoas têm certo tipo de comportamentos que revelam algo sobre a sua
humanidade. Salvamos aqueles que achamos que devem prosseguir, vida após vida,
mundo após mundo. Somos os avaliadores do fim. É o fim. O fim do mundo.
Eu
sei bem porque é que me escolheram. Eu estava no primeiro grupo de pessoas, na
primeira avaliação. Ainda não havia juízes, como eu e os outros. Sobrámos só
nós os quatro e, por isso, ficámos para a posteridade. Já não me lembro bem
qual foi o meu teste, o teste original, mas sei que me safei porque me mantive
totalmente passiva, sem resposta, encolhida num canto enquanto as outras
pessoas se matavam umas às outras. Acho que com os outros três foi a mesma
coisa. Vão passando os anos, vão passando os tempos, vivemos e voltamos sempre
aqui. Nunca esquecemos o que se passou.
Os
primeiros grupos passam, os nossos amigos. Salvo todos. Vêm os grupos a seguir,
elimino todos. Neste fim do mundo o jogo é aborrecido, podemos ver para dentro
das caixas e as estações mudam no céu por cima de nós. Tanto está um denso
nevoeiro como as folhas da floresta atrás de nós viajam, folhas feitas de
vento. Vou bebendo as minhas litrosas e quase que adormeço. Entretanto chegam
mais pessoas. Vejo que estas são toda uma turma de adolescentes. Talvez seja
interessante.
Para
a caixa que tenho de observar entram cinco raparigas e um rapaz. Atento bem.
Eles estão nervosos, quando chega a altura do fim do mundo todos sabem que têm
de se destruir uns aos outros ou sobreviver todos juntos. Apenas não estão à
espera que seja através deste tipo de jogo mental. Quem inventou estes jogos,
quem inventou o fim do mundo? Não sabemos quem é o nosso chefe, não sabemos se
é omnipresente ou potente. Ele nunca falou connosco. Ele nunca nos disse se
estávamos a fazer bem ou mal. Nunca nos culpou por termos escolhido o Noé,
nunca se justificou quando enviou as bolas de fogo nem quando soltou aquela
serpente enorme, nem quando mandou o coiote comer toda a gente. Não sabemos
quem é, portanto fazemos nós as regras. Tudo depende do jogo, claro. Mas quem
decide somos nós, eu e os outros três.
Estas
raparigas têm todas cabelos de cores diferentes, são todas gordinhas, são todas
feiinhas. O rapaz é alto e tem o rosto cheio de borbulhas e cicatrizes
acneicas. Escolha interessante. A caixa fecha-se e apenas eu posso ver o que se
passa lá dentro. Recosto-me na minha cadeira de plástico. Para eles, lá dentro,
passam-se meses. Para mim não há tempo. O rapaz parece ter uma estratégia. A
estratégia dele é ser mais esperto que elas. E a única maneira de ser mais
esperto é conquistá-las. Uma a uma, falinhas mansas, elogios à beleza, à
estrutura, ao corpo, às mamas. Todas têm cabelos de cores diferentes, mas são
todas iguais, não há originais. Ele conquista-as e começa a alimentar-se delas.
Percebo o seu plano. Tenciona matá-las a seguir e ser o único dentro da caixa.
Só assim poderá ser salvo. A pouco e pouco aproxima-se delas. Não aparentam ter
muita personalidade, deixam-se conquistar, deixam-se ser comidas, é tudo muito rápido.
Pensam que a única forma de sair da caixa é submeter-se às vontades do macho.
Fazem-no, fazem-no repetidamente. E ele beija-as e apalpa-as e fode-as, uma,
duas, cinco, de cada vez, de uma só vez, umas em cima das outras, cabelos todos
de cores diferentes, pêlos púbicos todos de cores diferentes, será que ele acha
mesmo que se vai conseguir safar assim? Será que assim se safa do fim? A caixa
está cada vez mais suja.
Já fiz a minha
escolha. Uma das paredes da caixa, a que dá para o campo de ervas daninhas,
abre-se. Vejo os olhos do rapaz a iluminar-se, um sorriso largo a abrir-se, as
borbulhas brilhando. “Consegui! Suas putas, consegui!” Mas eu tenho uma má
notícia para ele. Porque deste lado estão os que se salvaram. E eles agarram
nas mãos das raparigas, cada unha da sua cor, e levam-nas para perto deles.
Elas cospem em cima do rapaz. “Nós deixámos que nos violasses. Nós sabíamos o
que ias fazer. Agora, tu vais morrer.”
Na parede do
outro lado abre-se uma pequena porta. Do outro lado, uma luz branca ofusca quem
olhar para ela. O rapaz começa a chorar, as lágrimas saltando por cima das
cabeças das borbulhas, cheias de pus. “Não, não me levem, salvem-me, salvem-me!”
Respiro fundo. Estas coisas aborrecem-me. Ordeno a sua saída. Não quero mais
vê-lo. Grandes mãos mecânicas agarram-no pelos membros, ele grita e debate-se
mas nada as pode parar. Vai para o outro lado, encontrar-se com as pessoas do
outro lado. Está lá uma conhecida minha. Uma princesa, Vitória ou Elizabete, já
não me lembro bem do nome dela. Está condenada para toda a eternidade a modelar
uma raposa de plasticina. A pasta enrola-se nos seus dedos e ela amassa e
destrói a raposa, até que tome a forma que deseje. A raposa tem o nariz
comprido, mas ela retira-lhe a massa da mandíbula, fica retrognata, coloca a
plasticina por cima do focinho e molda-a de forma a ter um grande sorriso. “Mãe,
minha mãe!”, reconhece ela, mas logo tem de voltar a amassar a raposa e a
procurar outra forma. Mas é sempre uma raposa.
Ainda falta
bastante para terminarmos o nosso trabalho aqui. Ainda tenho muitas litrosas e
a casa de banho é mesmo aqui ao lado. Vejo as pessoas a chegar do portão, a
correrem com medo para a rede e a verem o precipício, a descobrirem que não há
saída sem ser jogar o jogo. Afinal, este é o fim. O fim do mundo. O fim deste
mundo, pelo menos. É o fim do mundo. Lá na floresta, cigarras cantam.
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