Foto tirada numa ilha maravilhosa, circa 2017
A Ilha Maravilhosa
Sou uma
criança e depois de ir aos concertos vi-me a brincar na ilha maravilhosa. A
ilha não se chama assim, mas é o nome que lhe dou porque ela é, realmente, uma
maravilha. Da entrada da ilha, no topo da montanha, desço por escadas de pedra
negra, entalhadas na floresta, até chegar a grutas cheias de esconderijos,
rodeadas por flora exuberante, verdejante, tudo é verde e tudo é azul porque a
floresta se une ao mar. Mar brilhante, transparente, tocando na erva
florescente numa baía. As pessoas apanham sol, as pessoas protegem-se do sol na
sombra das montanhas que rodeiam o mar. Eu, eu por mim brinco. Brinco ao
elástico e o elástico é um círculo mágico de símbolos brilhantes de onde nascem
fadas. Estou com os meus amigos e os meus amigos são crianças, nunca os vi
antes mas eles são meus amigos, todos somos crianças.
Ela tem
o cabelo loiro entrançado, desde o topo da cabeça até à cintura. Ela é um pouco
gorda e tem calções de ganga e uma t-shirt da Minnie toda suja, que mal lhe
cobre a rotunda barriga parasitada e aquosa.
Ele tem
a pele morena e a cara comprida, cavalar, cabelo escuro e denso. Ele tem
calções de ganga e uma t-shirt branca toda suja, demasiado comprida, que lhe
cobre o torso macilento e ossudo. Ele tem uma máquina fotográfica e quer
tirar-nos fotos na ilha maravilhosa, mas a minha roupa não é boa para
fotografar, as sapatilhas brancas, a saia comprida de bombazine cor de rosa, a
blusa com folhos cor de rosa, os meus cabelos longos e negros e longos e
negros, oleosos pela seiva das plantas, orvalhados pela humidade do ar.
“Porque
não tiras fotografias à ilha?”
“Porque
a ilha não é interessante, só tem aquelas fumarolas”.
Fumo
sai de pontos estranhos das montanhas, como se a floresta estivesse em chamas,
pequenos incêndios localizados que são apenas o bafo da terra, cheio de enxofre
e tóxicos. Estão lá longe. Aqui faz frio.
De
repente, o meu amigo salta para a frente. Alguma coisa aparece na baía e essa
coisa parece ser motivo de maior para se tirar fotografias. Uma coisa. Uma
coisa enorme. Sáurio potente, escamoso, escuro, de patas triangulares, com um
enorme chifre no focinho diabólico, todo ele cheira a mar e enxofre, todo ele
cheira às baleias que caçámos com arpão na falésia, todo ele cheira ao sangue
mordido pelos cães de água, o monstro é o ventre da baleia morta, o monstro é a
cria da baleia morta que não nasceu porque matámos a baleia, a baleia está
morta.
Claro
que como isto é a ilha maravilhosa, claro que o monstro é um monstro da paz e
nada de mal fará a ninguém. Todos correm para o ver e as pessoas que apanham
sol à beira da água levantam as cabeças. De onde estou parece que o monstro
gigantesco é do mesmo tamanho das pessoas, ele muda de tamanho conforme as
pessoas mas ainda assim é enorme, enorme como a própria ilha. Inclina a
focinheira de narinas latejantes sobre um banhista e, boca de rodas dentadas,
beija-lhe a cabeça, morde-lhe a cabeça, absorve o seu corpo, a sua alma,
brevemente o banhista é só um saco de pele e ossos.
Só aí é
que as pessoas gritam e todos tentam fugir.
O resto
é muito rápido. Todas as pessoas sofrem o processo de absorção, o monstro
cresce e diminui, as pessoas morrem e são sangue e ossos e são sacos de
plástico pretos, são sacos do lixo perdidos na poluição do mar, só faltamos
nós, só faltamos nós, grito para a minha amiga entrar na gruta, escondo-a numa
reentrância coberta de ervas daninhas todas secas. Eu escondo-me ao lado, junto
a uma parede de estalagmites, poças de água e musgo tumefacto. O monstro
aproxima-se e o seu cheiro é marinho, o monstro aproxima-se e eu penso “come,
come a minha amiga, come-a toda, papa-la”, mas é a mim que ele me come,
morde-me a cabeça e arrasta-me, eu gritando pelo chão, eu vejo-me a ser
transformada num saco e o monstro labe os beiços e caminha para dentro de água,
a sua cauda cianótica suja de fezes abanando de felicidade pela chacina.
Mas eu
ainda estou na gruta. A minha amiga foge, foge pelas escadas acima e à minha
frente fecha-se a porta de uma cabine telefónica. Abro-a. Corro atrás da minha
amiga, suas tranças abanando, eu gritando “ainda aqui estou, ainda estou viva!”
Chego a
ela, ela está a tentar abrir as portas de vidro que nos darão acesso ao metro e
nos permitirão fugir da ilha (maravilhosa ilha, maravilhosa), eu grito “espera
por mim, ainda aqui estou, ainda estou viva!”, e toco-lhe, abraço-a por trás,
mas quando lhe toco não toco porque eu já não existo, minhas mãos atravessam as
tranças loiras, meu corpo passa pelo meio da barriga porcina, meus cabelos
negros misturam-se com a carinha torta e pálida da minha amiga e eu grito “ainda
aqui estou, ainda estou viva!”, mas não estou porque a minha voz não existe e
eu morri quando o monstro me arrastou pelas ervas e agora o meu corpo é nada,
resta apenas o que eu sou, mas ninguém pode ver isso.
Ela
atravessa as portas automáticas, que finalmente se abrem. Oiço o metro a chegar
ao longe. Ela corre, as portas fecham-se. Não as posso atravessar.
Só eu,
só eu aqui. Eu na ilha maravilhosa.
Sem comentários:
Enviar um comentário