AntiqueWallArt
Chemo
Apesar
de tomar banho todos os dias, só lavo a cabeça duas vezes por semana. Não tenho
tempo, não tenho paciência: o meu cabelo é demasiado comprido e cheio.
Preferível andar com ele sempre preso, num rabo-de-cavalo ou, ainda melhor, num
coque. Assim, não perco por aí um milhão de caracóis e outros cabelos
fugitivos. No entanto, nessa manhã em que fazia os meus vinte e seis anos,
pensei que queria lavar a cabeça.
Estava
a lavá-la, ainda cheia de sono, mal acordada de uma noite de excitação (afinal,
estava prestes a fazer anos!), quando reparei que algo estava errado com o meu
corpo. Olhei para o meu peito e, no centro, precisamente no meio do esterno,
estava uma coisa redonda. Não entrei logo em pânico, penso eu. Ainda estava
demasiado adormecida para entrar em pânico. Mas quando me vi ao espelho,
reparei que alguma coisa estava realmente errada. Uma bola, uma massa, como um
terceiro seio. Ali no meio. Coberto por pele. Duro. Carreguei-lhe: não doía.
Podia senti-lo a mover-se ligeiramente, se lhe tocasse. Pensei, claro, que
poderia aguardar que o meu dia de aniversário terminasse. Podia ser que
passasse durante o dia. Se lhe pusesse um pouco de gelo. Se lhe pusesse um
pouco de voltaren ou fenergan. Provavelmente era uma borbulha, uma reacção
alérgica exagerada.
Mas
quando fui por o sutiã, percebi que tinha de tratar do assunto imediatamente. O
meu corpo estava mutado e não poderia passar o aniversário assim. Estava feia.
Ninguém merece estar feio no dia de anos.
Chamei
a minha mãe, que estava na cozinha a preparar um bolo de chocolate. Nem sequer
gosto muito de bolo de chocolate, mas queria deixá-la participar nas celebrações
da forma que mais lhe apetecesse. Enfim, ela apareceu e imediatamente
interrompeu as suas actividades culinárias para me levar ao hospital. Podia ser
algo muito grave!
Deram-me
uma pulseira verde nas urgências. Chegámos lá… Seriam umas onze horas da manhã.
Anoitecia quando fui atendida. Imediatamente, fizeram uma série de requisições
para exames, sem sequer olhar muito para o objecto que tinha crescido no centro
do meu peito. Eu perguntava-lhes se não podiam simplesmente arranca-lo. O meu
dia, o meu dia especial: arruinado.
Passados
alguns dias, vieram os resultados. Pediam-me para marcar uma consulta na
oncologia. Oncologia? Porquê? Eu era, eu sou!, demasiado nova para ter um
cancro! Deve haver algum engano!
A
médica mostrou-me os resultados dos exames. Passava-se algo de incompreensível
comigo: de um dia para o outro, havia-me crescido uma massa que, certamente,
era tumoral. Porque normalmente as massas que crescem nos corpos das pessoas
são tumorais. Mas os exames feitos, o raio-x, a tac, a biópsia, revelavam que a
estrutura desde objecto estranho era muito especial. A médica conseguiu apenas
descrevê-lo como “aparenta ter a estrutura de um caroço, como um caroço de
abacate, quer na forma macroscópica quer no exame histopatológico da biópsia.”
“Vamos
ter de o tirar, mas primeiro temos de o reduzir. Vamos hoje falar do seu plano
para quimioterapia.”
Ao
início recusei-me. Continuava a acreditar que o tal caroço de abacate
desapareceria se aguardássemos. Mas quando contei o resumo da consulta à minha
mãe, ela entrou em pânico. O pânico que eu ainda não tinha passou de imediato
para ela e ordenou-me, sem mais questões, que fizesse exactamente o que os
médicos diziam.
Assim
começou o meu tratamento.
Eram
comprimidos, era medicação injectável. Ao início não custava, claro, mas depois
começaram os efeitos secundários. O primeiro foi a náusea. Não conseguia comer
nada, tudo me deixava a boca seca, como se estivesse a comer cartão. Quando
comia alguma coisa, o meu estômago revoltava-se e ordenava-me que corresse para
a casa de banho, onde eu expelia os pedaços de alimentos meio mastigados, misturados
numa gosma amarelada, que borbulhava no fundo da sanita como uma poção de
bruxedo. Mas, graças ainda a outra medicação injectável, comecei a tolerar
melhor os alimentos. Descobri coisas novas sobre as minhas preferências
alimentares. Passei a gostar de grelos. Passei a detestar gelados. O caroço de
abacate no meu peito continuava exactamente na mesma.
Comecei
a reparar que outras alterações aconteciam com o meu corpo. Frieiras nos dedos,
das mãos e dos pés, como se o músculo dentro da pele de repente inchasse demasiado
e se quisesse libertar. As minhas unhas negras, frágeis. Um dia começaram a
cair. E o cabelo. Também começou a cair. Acordei um dia e tinha uma enorme
mecha de cabelo, como a cauda de um animal, solto na almofada. Quando lavei o
cabelo nesse dia, caiu quase todo. Chorei. A minha mãe levou-me a um
cabeleireiro para rapar a cabeça. Depois fomos comprar uma peruca. Perucas
caras, de cabelos naturais, cabelos vindos de cabecinhas rapadas na Ásia ou
noutro sítio qualquer. Tudo aquilo me parecia deprimente. Eu que sempre me
tinha queixado do meu cabelo demasiado grande e volumoso, agora era uma careca
em busca de uma cabeça falsa.
A minha
mãe acabou por escolher uma para mim. Era parecida com o meu cabelo original.
Foi cara, muito cara. Mas a minha mãe apenas me queria ver feliz naquele
momento. O que me faria mais feliz seria ver-me livre do caroço de abacate sem
ter de passar por todas aquelas coisas. Afinal, que mal pode fazer um caroço de
abacate? Houvesse um sutiã com três bolsas e talvez pudesse viver com ele para
sempre. Ou talvez crescesse um abacateiro no meu peito.
Na rua
usava sempre a peruca. Na oncologia tive um workshop de amarrar lenços na
cabeça e passei a usar isso em casa. Via-me ao espelho com o lenço e reparava
que a minha cara de vinte e seis anos tinha envelhecido décadas em poucos dias.
Eu emagrecia e as minhas bochechas desapareceram. Eu emagrecia e as olheiras
aumentavam, em grandes papos violetas.
Ia ao
hospital frequentemente. Os médicos não sabiam explicar porque é que, apesar de
todos os tratamentos, o suposto caroço de abacate não desaparecia nem diminuía
de tamanho. Com a dimensão que tinha, era demasiado perigoso operar, para se
proceder à extracção.
Comecei
a fazer radio. Radio como em radioterapia, não como em estação FM. A pele de
toda aquela zona ficou negra e começou a cair em pedaços. Era carne viva e, por
baixo, conseguia ver a cor da minha massa e um bocadinho da sua textura. Era
exactamente como tinham descrito: um caroço de abacate.
Mas,
apesar de tudo, não diminuiu.
Portanto,
tenho de continuar a fazer quimio, a fazer radio, a fazer de tudo. Quero parar,
mas a minha mãe não deixa. Pensam que é um cancro, um cancro de mama. Pode
metastizar para o pulmão, para o fígado, para o esófago. A minha mãe não quer
que eu morra, claro. Eu também não quero morrer, claro. Mas ninguém me ouve
quando tento explicar que esta coisa é absolutamente inofensiva. É um abacate,
não passa de um abacate. Tenho de continuar a vomitar, a emagrecer, com partes
do meu corpo a cair, tudo por causa de um abacate.
Não é
ele que me vai matar, penso. Acho que é a cura que me vai matar. O coração já
começa a dar de si. Talvez depois de eu morrer possam fazer a excisão da massa
e aí saberão que eu sempre tive razão.
Por
enquanto, aguentar a cura. Mas tenho a certeza que me vai matar.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarBoas. Desculpe a pergunta, mas este texto é ficção?
ResponderEliminarBom dia, tudo à vontade. :) É inventado, sim, embora baseado em experiências a que assisti.
EliminarAh bom, fico feliz por saber :)
Eliminar