Yokan
Desde pequeno que me esforço bastante para não ser a causa de incómodo de
alguém. Meus pais ensinaram-me que devia ser sempre discreto e cuidadoso para
não magoar as pessoas à minha volta e até hoje, que já sou muito mais velho,
mantenho essa regra de ouro. Por isso, quando me sento no metro com as compras
aguardo sempre que todos se sentem. Assim, não roubo o lugar a ninguém.
Às
vezes as pessoas oferecem-me o lugar. Olham para mim, talvez já um pouco
encurvado, talvez já um pouco enrugado, talvez já um pouco embranquecido, devem
pensar que estou com dificuldades em estar no meio da multidão do metro,
carregado com sacos, debilmente agarrado ao varão, procurando encontrar a porta
de saída sem ser arrastado pela corrente de gente, atenção à distância entre as
portas e a plataforma, takecareofiorbelongings… Mas a verdade é que prefiro
estar em pé a ver alguém impedido de se sentar por mim ou pelos meus sacos de
compras.
O
supermercado onde vendem a comida que o peixe gosta mais fica longe, são duas
estações de metro. Por vezes, distraio-me a olhar para os pombos que estão
dentro da estação, tentando perceber como entraram ali, perceber o que procuram
exactamente. Por vezes tenho vontade de tirar um pouco do pão que trago nos
sacos e dar-lhos, para ver se finalmente encontram o que procuram. Mas isso
incomodaria toda a gente. Por vezes gostava de trazer o meu rádio portátil e
ouvir aquelas belas músicas dos anos oitenta. Mas isso incomodaria toda a
gente.
Se
me mantiver em pé, em silêncio, virado de costas, ninguém irá reparar em mim.
Eu reparo nas coisas, as coisas trazem-me memórias, mas desde que ela morreu
que sinto a cabeça aglutinada, como se tudo o que existe fosse um símbolo da
sua antiga existência. Estou no metro e vejo um anúncio do novo concerto do
Roberto Carlos e o meu primeiro pensamento é sempre “como ela gostava do
Roberto Carlos”, nunca as músicas, nunca as roupas, mas “como ela gostava”, “como
ela fazia”, “como ela queria”. Nesses momentos sei que tenho saudades.
Impeço-me de chorar, para não incomodar.
Quando
chego a casa com as compras, compras que faço todas as semanas após a viagem de
metro, a primeira coisa que faço é dar comida ao peixe. Li num guia sobre
aquariofilia que comprei na altura que não se deve alimentar este tipo de
peixes com muita frequência, pois eles não têm auto-controlo e comem até morrer.
Depois, limpo o filtro do aquário e ajusto a temperatura. É o meu pequeno
prazer semanal, ver aquela criatura minúscula, que não percebe nada, fazendo um
trejeito que talvez seja de felicidade.
Depois,
como todos os dias, encomendo o jantar do restaurante e como sozinho a olhar
para o peixe. Depois de ter voltado da guerra prometi a mim mesmo que apenas
comeria os alimentos preparados pela minha noiva, que veio a ser a minha
esposa. Mas agora ela já não está aqui, portanto não pude cumprir a promessa. Ela
também tinha prometido que, enquanto eu não voltasse da guerra, que beberia
sempre o café queimado. Habituou-se, nunca mais bebeu o café normal.
Acho
que também ela não cumpriu bem a promessa e que, por isso, estamos quites.
Não
tenho televisão, a casa ainda está decorada à maneira dela, cheia de quadros
floridos e pastorinhas de cerâmica, de certa forma é para mim insuportável
estar aqui, mas também não sei o que fazer, para onde ir, como me distrair.
Portanto, sento-me na varanda a ouvir rádio, sempre baixinho, muito baixinho
para não chatear os vizinhos. Ao menos quando a nossa filha ainda cá estava tínhamos
alegria. Mas depois da morte da minha esposa, ainda era adolescente a garota,
tudo mudou. Acabou a escola, empregou-se, saiu de casa, casou-se, teve o bebé,
descasou-se… Agora está na Inglaterra.
Vejo
no mapa onde exactamente é a Inglaterra, a quantos quilómetros exactamente fica
esse país. O peixe olha também para lá, provavelmente constatando que teríamos
de atravessar muita água para lá ir.
O
peixe foi um presente. Um presente meu para o meu neto. Comprei-o numa loja de
animais no fim da rua e fui a pé com o saquinho transparente na mão até à sua
casa. A minha filha zangou-se.
“Para
que é que vais dar essas porcarias ao miúdo? Não vês que não serve para nada?
Que não o podemos levar?”
“Levar
para onde?”
Foi
nesse dia que ela me disse que iam de abalada para Inglaterra, que vivia lá uma
amiga que lhe ia arranjar trabalho, que vivia lá um amigo que lhe ia arranjar
casa, que vivia lá mais não sei quem que ia fazer mais não sei o quê, fiquei
confuso, tão confuso, olhei em volta à procura da minha esposa, mas ela não
estava lá, nunca mais estaria em lado nenhum, foi assim que fiquei com o peixe.
Depois
comprei um livro de aquarofilia, porque prometi ao meu neto que ia tomar conta
do peixe até ele voltar.
O
peixe está um pouco maior, come bem, tem algas de plástico no aquário e parece
estar feliz à sua maneira, com o seu olhar vítreo sempre fixado em alguma coisa
que está fora da minha compreensão. Como não tenho ninguém com quem falar, falo
com o peixe. Mas ele nunca responde, ele nunca percebe.
Durante
os primeiros tempos após a partida da minha filha, tentei ligar-lhe para o
telemóvel. Eu não tenho uma coisa dessas, só tenho o meu velho telefone fixo,
um dos que não têm botões, em que ainda se disca o número. Portanto, quando ela
não atendeu pensei que o telefone estivesse estragado. Chamava, chamava, ia
sempre para a caixa de mensagens. Houve um dia em que deixou de chamar.
Procurei um técnico, que disse estar tudo bem com o telefone. Provavelmente a
rapariga tinha mudado para um número inglês, para não pagar roaming.
Perguntei
como poderia obter o número. O senhor disse que não sabia. Perguntei como
poderia falar com ela. O senhor disse para falar pelo skype. Eu não sei o que é
o skype. O senhor disse que se usava num computador.
Por
isso, fui à biblioteca municipal e pedi para usar um computador. Em princípio,
deveria ser semelhante a uma máquina de escrever, mas devo confessar que não
percebi nada sobre ele. Sabia que começava tudo com o carregar num tal de botão
Onofre… Pedi ajuda e a simpática menina da biblioteca conseguiu, através do
nome próprio e apelido, encontrar uma página com muitas fotografias da minha
filha e do meu neto, rodeados de pessoas
que eu não conhecia, felizes, mais crescidos, com roupas bonitas, ela com um ar
um pouco cansado, talvez. A menina da biblioteca disse-me que escrevesse uma
mensagem para ela. Escrevi:
“QUERIDA
FILHA OLÁ DAQUI PAI TELEFONA-ME NÃO TE CONSIGO TELEFONAR”
Alguns
segundos depois, para meu grande espanto, apareceu uma resposta:
“Por favor
pai, qual é a tua? Estás a gritar, não se escreve assim! Não se fala mais por
telefone, manda mensagem por aqui ou não fales. Quando puder falo mais, agora
muito ocupada.”
A menina da
biblioteca ficou a olhar para mim e eu sabia que os meus olhos se enchiam de
lágrimas. Procurei, como sempre, o conforto da minha esposa e, como sempre,
percebi mais uma vez que ela não existia mais. Fui-me embora. Cheguei a casa. Falei
com o peixe.
Estou até este
momento, mais ou menos, a tentar falar com ele. A tentar comunicar. Acho que
estou a conseguir ter uma espécie de ligação, uma ligação entre algo muito
velho, que sou eu, e algo muito mais antigo, que é o peixe. Sei que o devia
libertar. Estudei no livro de aquariofilia que este tipo de peixe é originário
da Ásia, sendo especialmente popular em lagos da China. Como levar o peixe para
a China? Talvez eu próprio devesse ir para a China.
Levaria o
peixe num saquinho transparente e, do centro de uma ponte em madeira num jardim
de um qualquer pagode, deixaria cair todo o seu conteúdo. Depois, se a ponte
fosse suficientemente alta, eu próprio me deixaria cair. Sim, cair dentro de um
rio, dentro de água corrente, para ser também um peixe, escamas douradas,
escamas prateadas, também eu um peixe de coração frio, sangue gelado, coração
despedaçado, eu finalmente livre, sem incomodar ninguém, nadando com a
corrente, rodeado de outros peixes como eu, até a voltar a encontrar, até
voltar a encontrar algo de muito pequenino mas tão bom, tão bom… Coração frio,
coração desfeito. Talvez já me tenha tornado num peixe agora.
Mas até as
pedras. Até as pedras se sentem tão sós…
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