Patryk Mogilnicki
Cortes de Papel
Aqui
me encontro prisioneira. Sei que estou inocente, o meu único crime foi não
saber o caminho. Perdi-me nos corredores do castelo, procurando o salão de
baile, corri no meu vestido branco de cetim, batendo portas umas atrás das
outras, descendo escadas, rectas, espiraladas, todo o tipo de escadas. Vim
parar a esta sala e agora sou prisioneira.
O
castelo está na colina sobre a praia e muitos dos seus níveis estão submersos
na água do mar. Sei disto porque esta sala está rodeada de pequenos corredores
fechados por grossos vidros, janelas que me mostram que estão cheios de água. A
sala é vermelha, paredes vermelhas, tecto vermelho, tapeçarias vermelhas com
grandes e complexos ornamentos dourados que brilham, com forma de pássaros, de
insectos, todo um ecossistema prisioneiro de grossos tecidos macios. Não há uma
mesa, nem uma cadeira, não há sítio nenhum onde me possa sentar nesta sala
circular. Olho pelos vidros, têm água do outro lado, mesmo que lhes bata, mesmo
que os parta, não tenho saída. Aguardo. Sinto que deveria ter algum tipo de
desespero em mim, mas estou extremamente calma. Oiço vozes algures, vozes de
fantasmas. Às vezes posso vê-los, os fantasmas de todas as pessoas que ficaram
presas nesta sala enquanto procuravam pelo salão de baile. Estão a fazer uma
festa. Não tenho onde me encostar, sinto os joelhos a ceder e um sono profundo
invade-me. Aqui morrerei, mas não me sinto infeliz.
Subitamente
vejo uma figura do outro lado de um dos vidros. Os vidros têm uma forma
perfeitamente quadrilátera e aquele enquadra a pessoa. É um homem vestido com
um longo casaco de veludo vermelho, com decorações douradas iguais às do
quarto. Faz-me um sinal, mas eu estou quase a adormecer, levanto os olhos para
ele mas mal o consigo distinguir, em breve serei também um fantasma. Mas ele
estende o braço na minha direcção, apontando com o dedo indicador o vidro que
nos separa. Do outro lado a água agita-se numa corrente de bolhas e gases. A
água está cada vez mais agitada mas eu sinto-me a cair, os meus olhos a
fecharem, só tenho tempo de ver o que aí vem antes de cair. São hipopótamos,
três hipopótamos muito pequenos, infantis, que nadam a toda a velocidade e
batem contra o vidro. Parte-se, a água jorra, a água inunda a sala, sinto-me a
cair mas o homem agarra-me.
As
suas mãos são grandes e cheias de veias.
Ele
leva-me pela mão, descendo escadarias cheias de olhos misteriosos, rubros e
curiosos. Oiço os fantasmas, falam numa língua antiga, uma língua que está para
além da minha compreensão. Caio muitas vezes, mas o homem levanta-me. Lá ao
fundo uma porta.
Ar
fresco da noite. Estamos na praia.
Ele
larga-me e eu avanço lentamente para o mar. Sinto que no mar poderei estar em
paz, que não terei mais de ir ao salão de baile, que ninguém se importará com a
bainha rasgada do meu vestido nem com as nódoas de terra no corpete. Estou
quase a chegar, mas ele está cada vez mais longe. Viro-me para trás para acenar
ao homem que me salvou. Um último adeus antes de me libertar. Mas ele está
rodeado de pessoas, um exército que se reuniu à sua volta. Para se despedir de
mim? Para me impedir de ir ter com o mar? Um homem alto de bigode retorcido
aproxima-se. Tem uma espada rectangular na mão, uma espada muito afiada que
brande de um lado para o outro. Protejo a cara com as mãos e a espada corta-me,
finos cortes de papel que nem sequer sangram, são apenas dolorosos como uma
delicada dormência que me impede de estender os dedos.
Protegendo-me,
andando para trás, pedindo clemência, encontro a linha da água. O homem da
espada para e eu avanço cada vez mais. Tenho água pelos joelhos, tenho água
pela cintura, tenho água pelo peito. É uma água muito quente, como uma sopa
cheia de sal, quase sem ondas. Penetro no mar e estou no meio de grandes algas,
muitas algas húmidas e verdes que se espalham à minha volta fazendo formas de
enormes animais. Uma das formas aproxima-se. É um cavalo, como se feito de
ervas enroladas umas nas outras. O seu olho vegetal olha-me.
Lá
em cima, as nuvens são o cobertor da lua.
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