Black Sabbath
Black Sabbath
A Grande Pescaria
Por
vezes sinto que as pessoas têm medo de mim. Quando vou a passar na rua e
momentos do género. Talvez seja só impressão minha. Mas este medo generalizado
das pessoas em relação à minha pessoa tem vindo a crescer. Às vezes reparo nas
velhotas que passam para o outro lado na rua. Ou nos miúdos que abrem muito os
olhos quando vêem as tattoos. Mas talvez seja só impressão minha. Ao início,
quando a minha transformação começou nesses idos anos adolescentes, gostava
disso. Gostava de causar medo às pessoas. Eu era do mal, eu era do metal, eu
era do hardcore. Se uma mãe de família cheia de sacos se apressasse a passar
por mim, eu ria-me. Nem me ria por dentro. Apontava para ela e gargalhava, como
se possuído por um demónio. Era assim nessa altura... Sentia-me possuído e
achava isso a melhor coisa do mundo. Agora... Agora gostava de ajudar a senhora
a carregar os sacos.
Essas
coisas, regras de boa educação, saber conviver em sociedade, foram-me ensinadas
pelo meu pai. Nunca o achei um grande homem. Chegou a haver uma fase em que o
odiava. Mas ele sempre me ensinou estas coisas. Não tinha uma mãe para mas
poder ensinar. Ela morreu quando eu nasci. Alimentei durante anos o sentimento
de que a culpa tinha sido minha. Depois transferi a culpa para o meu pai. Não
havia razão para isso, mas ele passou a ser o culpado de todos os meus
problemas. Talvez sempre tenha tido jeito para me fazer de vítima... Enfim, de
todos os modos ele ensinou-me a ser educado. A questão é que eu recusava esses
ensinamentos.
Não
sei precisar quando começou a minha transformação, de miúdo normal para irmão
da seita dos concertos de metal. Mas posso dizer que fui muito influenciado
pelos Black Sabbath. Estava um disco em promoção na Valentim de Carvalho e o
nome assustou-me. A capa assustou-me. Mesmo assim, senti-me fatalmente atraído
para aquele CD. Estava com o meu pai, implorei-lhe que mo comprasse. Ele nem
sequer discutiu muito, não falou sobre o preço, não falou sobre a banda em si.
Agora que olho para trás, tenho a certeza de que ele sabia o que é que era. Mas
na altura, depois de ouvir o disco, senti-me como que completamente afastado do
meu pai, como se tivesse aterrado num novíssimo planeta feito de energia
maléfica. Gostei dela. Pela primeira vez senti-me em casa. Não é como se a
minha casa, onde vivia na altura e onde me mantenho, fosse um mau lugar. Mas
estava lá o meu pai. Eu não queria estar com ele. Queria estar onde os Black
Sabbath estivessem. E esse lugar era a música.
Rapidamente
o meu quarto se transformou num antro de terror. Pintei as paredes de cinzento
e, à medida que ia descobrindo mais música, comecei a enchê-las com posters
variados, todos em tons negros e brancos, todos com as bandas que me aliviavam
a dor de ter de partilhar a mesa da cozinha com o meu pai. Não o odiava, não
pensemos assim. Mas ele representava tudo aquilo que eu não queria ser.
Representava o facto de eu não ter mãe. Representava as boas notas na escola e
não cuspir para o chão. Eu queria ser livre e música libertava-me.
Foi
através dela que fiz os meus amigos, os meus melhores amigos. Éramos crianças,
mas ainda continuamos juntos apesar de todos os problemas. Comecei a ir a
concertos e a minha maior liberdade era espalhar algum caos numa moshada.
Conheci muitas pessoas, todas com nomes agradáveis. Morte, Azar, Satã, Black
Mike, coisas assim. Conheci miúdas. Eram agressivas, eram como eu. Tinham muito
sobre que reclamar. Apaixonei-me, desapaixonei-me, coisas parvas de miúdos. Mas
tinha encontrado a minha identidade. Um nome para ela? Não sei. Gosto de metal.
Gosto de preto. Gosto de tatuagens e piercings. É o meu conforto. Soubessem
vocês a liberdade que sinto a cada pontada da agulha, quando faço uma nova
tattoo. É dor, sim. Mas a minha mente viajou. Para aquele lugar onde fui da
primeira vez que ouvi os Black Sabbath.
Mas
há um detalhe. O meu pai continuava presente. Ao início ele até se esforço para
ir a um ou dois concertos comigo, mas perante e humilhação que eu sentia com a
sua presença acabou por desistir. Eu não o odiava. Mas sentia, como hei-de explicar...
Uma espécie de... Nojo? Talvez não seja essa a palavra certa... Mas éramos tão
diferentes, ele tão correcto e eu procurando a liberdade total, ele tão
democrático e eu vivendo uma completa anarquia interior... Que eu não suportava
estar no mesmo espaço que ele. O meu pai sabia disso. Nunca fazia questão de
estar presente. Quando eu gritei com ele e lhe atirei com a porta na cara
porque ele queria ir a uma festa da escola, ele não foi. Quando eu lhe mostrei
um pirete porque ele me queria dar boleia para um concerto no Seixal, ele não
foi. Eu tinha os meus amigos, para que precisaria eu de um pai?
Desisti
da ideia da faculdade quando vi a minha primeira nota de matemática. Portanto
terminei a escola e comecei a trabalhar como empilhador num supermercado da
zona. Ao início senti que tudo era perfeito. Tinha dinheiro para comprar mais
discos, para ir a mais concertos, para comprar mais roupas. Era um trabalho
primáriamente nocturno e eu gostava da noite. Mas comecei a sentir-me cansado.
Comecei a recusar convites para sair, comecei a dormir mais. Já nem me sentia
com vontade de discutir com o meu pai. Foi então que, uma noite ele sugeriu dar
uma volta, para desanuviar. Eu estava tão exausto e desmotivado que aceitei,
apesar de ter dado bastantes voltas à cabeça sobre se seria certo sair com a
representação d’O Homem. E foi nesse dia que ele me levou à pesca.
Eu
nunca tinha pescado e achava aquilo uma tolice, uma estupidez pegada. Qual era
a piada de estar em frente ao rio com uma cana à espera que um peixe
aparecesse? O rio era feito para se olhar enquanto se fuma um bongo ou para
mijar nele, sei lá... Mas nesse dia foi diferente. Para começar, estava um frio
terrível. Eu não tinha levado um casaco forte, mas o meu pai tinha um extra na
mala do carro. Sentámo-nos, ele preparou as linhas, os anzóis, os iscos, todas
essas coisas. Depois ficámos a olhar para o rio. Era um rio negro, pontilhado
por fachos luminosos, reflexos da lua que ondeavam de uma forma mística,
incompreensível para mim. E de novo veio aquele sentimento, aquele primeiro
sentimento: estava em casa. A imagem à minha frente era calma, demasiado calma,
ao mesmo tempo infantil e tenebrosa, como se alguma força brutal pudesse
descender sobre nós a qualquer momento. Então, o peixe picou. De repente, vi o
meu pai de forma diferente, ele não era mais um homem, uma representação d’O
Homem, era uma força da natureza lutando contra algo imprevisível,
incontrolável. Algo extraordinário estava a acontecer perante os meus olhos e
eu nada pude fazer ou dizer. Apenas olhei, observei tudo. Observei o peixe
preso à linha, o meu pai a pousá-lo no chão, a tirar o anzol e a pegar nele.
Estava a libertar o peixe. Eu não percebi porquê à primeira, mas senti uma
admiração perante tal poder, a luta, o separar a vida da morte, que mudou
completamente a minha visão das coisas.
Isto
é, eu continuava a ser igual a mim próprio, a mudar para alargadores cada vez
maiores e tudo isso. No dia a dia continuava a gritar com o meu pai e a
mandá-lo à merda quando queimava as torradas. Mas passei a ir à pesca com ele.
E o meu pai ensinou-me a pescar e pude entrar nesse universo onde tudo é calmo,
onde há água, estrelas e lua, onde os peixes vivem e onde a noite é negra.
Há
coisa de uma semana, tudo mudou. O meu pai morreu. Foi uma coisa repentina,
ninguém estava à espera. Ele estava no seu escritório e simplesmente caiu para
o lado e morreu. Quando recebi a notícia não tive reacção. Não chorei. Pensava
que fosse sentir alívio, mas nada disso. Apenas uma imensa e inexorável tristeza,
uma tristeza descontrolada. O meu primeiro pensamento foi o que vestiria no
funeral. Todas as minhas roupas são pretas, todas elas seriam apropriadas. Mas
eu sabia que não me iria sentir bem, que não me iria sentir real. O melhor que
consegui foi substituir a t-shirt por uma camisa.
Quando
voltei para casa, com a urna cheia de cinzas nas mãos, pensei longamente no que
fazer a seguir. Liguei a música, nenhuma delas era suficiente agressiva para
conter os meus sentimentos. Então pensei em ir à pesca. Com as cinzas. Uma
última pescaria.
Agarrei
em tudo o que precisava, peguei no carro e pus-me a caminho. E lá ia eu,
concentrado, quase contente, com a cana de pesca numa mão e a lancheira com os
iscos vivos e as cinzas do meu pai na outra. Infelizmente aconteceu algo que
não estava à espera. Os meus amigos. Vinham a descer a rua que cruzava com a
que estava, todos com uma litra em cada mão.
-
Então man que é isso? Vais à pesca?
Eu
não sabia o que responder. Então disse “ya”, porque era verdade.
Eles
decidiram juntar-se a mim, falando ruidosamente uns com os outros, comentando
como era improvável eu ir à pesca, como era ujma coisa que nada tinha a ver
comigo e todas essas coisas. Sentia-me
terrível por estar a partilhar aquele lugar secreto, mas eles são os meus
amigos, não os podia mandar embora. Lá chegados preparei tudo para pescar, sem
me preocupar em realmente apanhar um peixe ou não. Os meus amigos não paravam
de fazer barulho, decidiram por música a tocar com o telemóvel e umas colunas
portáteis. Interrompi o que estava a fazer. Com toda a calma.
-
Pessoal, para o peixe vir têm de fazer pouco barulho.
Eles
começaram a rir-se, mas devo ter olhado para eles de tal maneira que os seus
sorrisos esmoreceram e sentaram-se todos à minha volta. Muito baixinho
começaram a perguntar-me o que se passava. Comecei, então, a explicar como se
pescava. Expliquei todas as técnicas que sabiam e, por alguma razão estranha,
pelo meio de muita gíria e palavrões, eles pareciam estar interessados.
Um
deles reparou na urna dentro da lancheira. Perguntou o que era.
-
É o meu pai. Também está à pesca com a gente.
Isto
foi uma frase tão fora, tão fora do contexto real, que todos ficaram altamente
excitados. Para eles, que nunca tinham conhecido o meu pai, não significava mais
nada para além de uma imagem altamente maléfica e muito gótica. De certa forma,
era a maneira deles mostrarem respeito. Uma maneira muito própria, mas sincera.
E
todos estavam concetrados nisso quando um peixe mordeu o isco. Puxei-o. Mas era
algo de brutal. Era possivelmente o maior peixe que eu tinha apanhado na vida.
Tinha uma força imensa, uma força que me puxava para o fundo do rio, o lugar
certo para se estar, um lugar de paz, sem ruído, sem luz. Eu sabia que os meus
amigos estavam todos aos gritos, tentando motivar-me, mas eu não ouvia nada, só
via a luz da lua e a linha a mexer-se a toda a velocidade, a ir-se embora. Mas
consegui puxá-lo. E era realmente o maior peixe que eu já tinha visto. Tentei
fazer como o meu pai sempre fez. Tirar o anzol. Libertá-lo. Mas os meus dedos
estavam dormentes, não tinha coordenação, os meus amigos saltavam,
empurravam-se, sentiam-se como no centro de um mosh, mas incapacitado, uma
pessoa sem braços no meio de uma luta com neonazis, o peixe debatia-se, eu não
conseguia fazer nada, eu não conseguia, eu não consegui. O peixe morreu
asfixiado.
Senti
um abraço por trás de mim.
-
Parabéns man! Queres que te tire uma foto?
Eu
não sabia. Então disse “não, man, tá-se bem”, porque era verdade.
Os
meus amigos felicitavam-se e felicitavam-me, como se todos tivessem contribuído
para a morte da infeliz criatura. Sem tentar ser muito solene, peguei na urna e
despejei-a para o rio. Tinha a vaga esperança de que pudesse encontrar o meu
pai de novo, sob a forma de um peixe. Talvez...
No
dia seguinte, convidei todo o pessoal para uma almoçarada lá em casa. Peixe
assado no forno, com batatas a murro e vegetais salteados. Procurei a receita
na net. Estava fixe. Uma amiga reparou no gira discos do meu pai.
-
Uau, estão aqui montes de 33 rotações, que fixe! Mete lá um para a gente ouvir!
Suspirei.
Não devia ser música a combinar com o nosso grupo. Fui escolher um disco,
talvez houvesse uma música clássica assim mais agressiva ou isso. Percorri-os.
Led Zeppelin, Deep Purple, Judas Priest, Alice Cooper, estavam lá todos. E no
meio deles estava aquele disco. Aquele primeiro disco dos Black Sabbath que ele
me tinha oferecido.
Afinal
não o tinha obrigado a dar-me o disco.
Foi só aí que
chorei.
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