quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Escrita Narrativa na Oficina do Cego - Terceira Sessão

Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Exercícios e Início dos Trabalhos Finais

Trabalho para Cabeça - Duas histórias baseadas em fotografias

Primeira História - Álbum
 
 
                A sua primeira fotografia foi ainda no tempo das máquinas analógicas. Foi uma fotografia tirada por acaso, numa festa entre amigos. Ele estava com a sua camisola azul, já cheia de nódoas de vinho e ela com o vestido de alcinhas que tinha levado propositadamente, na eventualidade de encontrar o seu grande amor. Mas na altura, ainda não se conheciam, mostra-o a fotografia. Podemos ver que ele olha para ela concentrado, quase podendo adivinhar o seu desconforto roçando-se contra as calças. E ela tem um esgar de nojo, mas muito mais tarde explicaria sempre que era porque tinha encontrado um caracol na salada.

                Depois dessa fotografia vieram muitas mais. Eles gostavam de tirar fotografias juntos e viajavam muito. O álbum estava cheio delas, mas o casal tinha um acordo: só teriam um álbum para guardar todas as fotografias da sua vida. À medida que os anos iam passando, iam retirando as fotografias menos importantes. Assim, sobravam esta primeira, que os fazia recordar esse momento tão estranho que depois evoluiu para outros, cada vez menos estranhos, cada vez menos extraviados, cada vez mais íntimos. De vez em quando, abriam o álbum e riam-se um do outro, recordando os momentos felizes. Nunca tiravam fotografias de momentos menos bons. A fotografia era uma arte da pura felicidade.

                Depois vieram os telemóveis e as fotografias dos telemóveis. O álbum ficou esquecido dentro da jornaleira, ganhando camadas e camadas de pó, fino ao início mas agora inexplicavelmente espesso. Perderam o hábito de eliminar fotografias e agora tinham todas, todas guardadas dentro do aparelho. Perderam o hábito de as olhar juntos, cada um usava o seu e ria-se de si para si, sem explicar à outra parte a causa da alegria. A vida que era um álbum, passou a ser uma sucessão de fotos. Ele sentia que tinham perdido o significado, mas não lhe disse nada. Achava que se dissesse alguma coisa, deixariam de tirar fotografias de todo. Se não tivesse as fotografias, como a iria recordar?

                Tinha razão. Só através das fotos a iria recordar agora. Sentia-se envelhecido e triste, sentado na estação dos barcos, esperando o Cacilheiro que o iria levar a casa. Depois do funeral, como seria estar na sua casa? Pegou no telemóvel e colocou os óculos sobre as sobrancelhas. Era mais fácil ver ao perto sem óculos. E começou a seleccionar as fotos. Viu-as uma a uma, enquanto esperava pelo barco. E apagava-as, apagava-as repetidamente, como se nunca mais as quisesse ver. Mas o que ele queria era voltar ao álbum, encardido na jornaleira. Essas sim, eram as fotografias importantes.

Segunda História - Prédio Florbela Espanca


                Este é um bairro em que todas as ruas têm nomes de escritores. Costumo sentar-me no vão da escada de um dos prédios da Florbela Espanca. Sento-me aí a beber a minha litra e a fumar os meus cigarros, enquanto espero que os meus amigos cheguem. Depois vamos para o miradouro. Mas há umas semanas comecei a reparar em movimentos estranhos dentro do prédio, aquele prédio Florbela Espanca.

                Eu gosto de animais. Sempre gostei, nunca vou deixar de gostar. Então, quando eles passam por mim, soltos ou à trela, reparo neles. Uma dessas noites, reparei num homem velho, de bigode branco e óculos, vestido com um colete cheio de bolsos. Trazia consigo um caniche pequenino e amarelado da sujidade, que parecia altamente excitado por vir passear à rua. Achei estranho o passeio demorar tão pouco tempo, pois eles voltaram poucos minutos depois.

                Teria ignorado o assunto, se passado uns dias não tivesse visto o mesmo homem, velho, de bigode branco e óculos, desta vez vestido com um polo azul, abrindo a porta para dois outros cães, um cocker e um podengo, ambos castanhos. Tal como o outro, estavam muito excitados. Tal como o outro, o seu passeio foi extremamente curto.

                Como achei estranho, passei a ir para o vão de escada, com a minha litra, todas as noites. E todas as noites saia alguém do prédio, sempre com um cão diferente. Caniches variados, um ou outro rafeiro, até mesmo um pastor alemão. Adultos, velhos, cachorros, saíam cães de todos os tipos de dentro daquele prédio. Podia tirar as minhas conclusões… Aqueles acumuladores de animais, psicopatas, deviam ter a casa cheia de gente e cheia de animais. Pensei em dizer à polícia e fui-me embora para procurar o número. Quando me afastava, ouvi os gritos. Horríveis gritos de cães, ganindo, chorando.

                Estavam a matá-los.

                Teria de resolver o assunto pelas minhas próprias mãos.

                No dia seguinte, pedi a pistola emprestada ao meu irmão, que é polícia. Ele pensou que era apenas para mostrar aos meus amigos e eu não o contrariei. Fui para o prédio Florbela Espanca e aguardei, encostada à porta. Vi uma pessoa a sair. Uma rapariga vestida de cor de rosa, com os cabelos pintados de ruivo. Não trazia cão.

                “Puta, agora substituíste os teus cães por gatos?”

                Aproximei-me por trás dela e toquei-lhe no ombro. Quando ela se virou, encostei-lhe a pistola ao queixo e sussurrei algumas palavras, explicando as consequências dos seus horríveis actos contra animais.

                “Mas eu não tenho animais! Eu sou alérgica!”, repetia ela.

                Tinha os olhos verdes, delineados, muito abertos, muito brilhantes. O seu ar era quase cómico. Era como se ela fingisse estar a morrer. Mas não. Ela estava mesmo a morrer.
 
 
 ESPIGA PINTO - Desenho de Florbela Espanca




Criação de Personagem - Ficha da Personagem

Nome - Carlos
Apelido - André
Alcunha - Carlos

1. Dimensão Psicofísica

Sexo e Idade - Homem; 31 anos (feitos há pouco tempo)
Tamanho e Peso - Alto e Magro
Aparência - Pele clara, cabelo e barba castanhos; olhos claros, variam entre verde e cinzento; orelhas e nariz grandes; cabelo a rarear
Defeitos - Cicatriz na bochecha esquerda, da primeira vez que se barbeou; marcas de acne; mas está tudo tapado pela barba!
Hereditariedade - Saudável
Aspecto - Restos de um estilo de vida industrial, veste preto e botas de biqueira de aço até hoje; um pouco mal cuidado, só toma banho dia sim dia não; tatuado, mas coberto pela roupa (pentagrama invertido no ombro direito; manga tribal no braço esquerdo; cruz celta muito detalhada na barriga da perna direita)
Acessórios - NON

2. Vida Familiar e Social

Classe Social - Remediada
Profissão - Trabalha numa oficina, de segunda a sábado com domingos escalados; sai tarde muitas vezes; salário podia ser melhor, mas adora o seu trabalho
Habilitações académicas - 12º, com curso profissional para a oficina
Ascendentes - Pais separados (Mãe foi para o Brasil quando Carlos tinha 9 anos; Pai está muito tempo afastado, pois é da Marinha); foi criado por Avó, casa dos 70-75 anos
Estado Civil e descendentes - Solteiro; tinha uma namorada que vivia com ele, mas ela acabou tudo; tem um gato (siamês? Tigrado?)
Nacionalidade - Português; pais e avós são do Ribatejo (Almeirim)
Espiritualidade - Experimentou o neo-paganismo e depois o satanismo; hoje em dia identifica-se como agnóstico
Filiações políticas - Aos 18 anos militou pelo Partido Comunista, depois experimentou o anarquismo organizado; agora, vota em branco (mas exerce sempre o seu direito de voto)
Hobbies - Música core e metal; jazz às escondidas; ir a concertos; sair para os copos; colecciona pequenas figuras de gatos
Relevância social - É amigo do seu amigo
 
3. Vida Psicológica

Vida amorosa - Muitas noites bem passadas; mas apenas duas namoradas a sério; gosta de se comprometer emocionalmente; ainda não recuperou do término da última relação
Crenças e Sonhos - As pessoas são más (Malice Mizer); um dia quer vir a ter uma oficina própria; gostava de um dia aprender a tocar baixo e fazer uma banda de grindcore ("Rotten Grapes")
Impedimentos e desilusões - A namorada que acabou tudo; o primeiro gato que teve, que foi atropelado; quando não está na noite pode ser muito tímido
Temperamento - Melancolia; calmo (fora do mosh: liberta lá todas as frustrações, medos e nervosismos)
Atitude - Resignado ao facto de nunca poder evoluir
Complexos - Pavor de ratos e ratazanas (um dia foi à casa de banho e estava uma enorme na sanita)
Inteligência - Numérica não é muito boa; musical em altas, também lê filosofia, que compreende
Qualidades - Passa despercebido; cozinha excelentes pratos de bacalhau; está sempre disponível para ouvir os outros; e para os ajudar também, dentro das suas possibilidades
Relação com os outros - Introvertido, liberta-se na noite; mesmo quando está mais afastado, os amigos lembram-se dele todas as vezes; neto único de filho único, é adorado pela avó


Criação de Personagem - Síntese

"O ser humano é um animal cheio de malícia e de miséria". Carlos André pensa isto, a caminho da oficina. Lembra-se frequentemente dela, que o deixou sem explicação. Depois lembra-se que tem de comprar areia para o gato. Terá de ser no dia seguinte... Esta noite os amigos estão à espera para irem ver um concerto numa garagem. Ainda bem que vão. Está mesmo a precisar de uma boa moshada. Talvez um dia venha a ter a sua própria banda... Quando poupar um pouco mais, vai comprar um baixo eléctrico. Recebe uma mensagem. Dali por 15 dias há noite livre de jazz, no bar habitual. Talvez seja piano solo...

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