Curso Intensivo de Escrita Narrativa na Oficina do Cego
Exercícios e Início dos Trabalhos Finais
Trabalho para Cabeça - Duas histórias baseadas em fotografias
Primeira História - Álbum
A
sua primeira fotografia foi ainda no tempo das máquinas analógicas. Foi uma
fotografia tirada por acaso, numa festa entre amigos. Ele estava com a sua
camisola azul, já cheia de nódoas de vinho e ela com o vestido de alcinhas que
tinha levado propositadamente, na eventualidade de encontrar o seu grande amor.
Mas na altura, ainda não se conheciam, mostra-o a fotografia. Podemos ver que
ele olha para ela concentrado, quase podendo adivinhar o seu desconforto
roçando-se contra as calças. E ela tem um esgar de nojo, mas muito mais tarde
explicaria sempre que era porque tinha encontrado um caracol na salada.
Depois
dessa fotografia vieram muitas mais. Eles gostavam de tirar fotografias juntos
e viajavam muito. O álbum estava cheio delas, mas o casal tinha um acordo: só
teriam um álbum para guardar todas as fotografias da sua vida. À medida que os
anos iam passando, iam retirando as fotografias menos importantes. Assim,
sobravam esta primeira, que os fazia recordar esse momento tão estranho que depois
evoluiu para outros, cada vez menos estranhos, cada vez menos extraviados, cada
vez mais íntimos. De vez em quando, abriam o álbum e riam-se um do outro,
recordando os momentos felizes. Nunca tiravam fotografias de momentos menos
bons. A fotografia era uma arte da pura felicidade.
Depois
vieram os telemóveis e as fotografias dos telemóveis. O álbum ficou esquecido
dentro da jornaleira, ganhando camadas e camadas de pó, fino ao início mas
agora inexplicavelmente espesso. Perderam o hábito de eliminar fotografias e
agora tinham todas, todas guardadas dentro do aparelho. Perderam o hábito de as
olhar juntos, cada um usava o seu e ria-se de si para si, sem explicar à outra
parte a causa da alegria. A vida que era um álbum, passou a ser uma sucessão de
fotos. Ele sentia que tinham perdido o significado, mas não lhe disse nada.
Achava que se dissesse alguma coisa, deixariam de tirar fotografias de todo. Se
não tivesse as fotografias, como a iria recordar?
Tinha
razão. Só através das fotos a iria recordar agora. Sentia-se envelhecido e
triste, sentado na estação dos barcos, esperando o Cacilheiro que o iria levar
a casa. Depois do funeral, como seria estar na sua casa? Pegou no telemóvel e
colocou os óculos sobre as sobrancelhas. Era mais fácil ver ao perto sem
óculos. E começou a seleccionar as fotos. Viu-as uma a uma, enquanto esperava
pelo barco. E apagava-as, apagava-as repetidamente, como se nunca mais as
quisesse ver. Mas o que ele queria era voltar ao álbum, encardido na
jornaleira. Essas sim, eram as fotografias importantes.
Segunda História - Prédio Florbela Espanca
Este é
um bairro em que todas as ruas têm nomes de escritores. Costumo sentar-me no
vão da escada de um dos prédios da Florbela Espanca. Sento-me aí a beber a
minha litra e a fumar os meus cigarros, enquanto espero que os meus amigos
cheguem. Depois vamos para o miradouro. Mas há umas semanas comecei a reparar
em movimentos estranhos dentro do prédio, aquele prédio Florbela Espanca.
Eu
gosto de animais. Sempre gostei, nunca vou deixar de gostar. Então, quando eles
passam por mim, soltos ou à trela, reparo neles. Uma dessas noites, reparei num
homem velho, de bigode branco e óculos, vestido com um colete cheio de bolsos.
Trazia consigo um caniche pequenino e amarelado da sujidade, que parecia
altamente excitado por vir passear à rua. Achei estranho o passeio demorar tão
pouco tempo, pois eles voltaram poucos minutos depois.
Teria
ignorado o assunto, se passado uns dias não tivesse visto o mesmo homem, velho,
de bigode branco e óculos, desta vez vestido com um polo azul, abrindo a porta
para dois outros cães, um cocker e um podengo, ambos castanhos. Tal como o
outro, estavam muito excitados. Tal como o outro, o seu passeio foi
extremamente curto.
Como
achei estranho, passei a ir para o vão de escada, com a minha litra, todas as
noites. E todas as noites saia alguém do prédio, sempre com um cão diferente.
Caniches variados, um ou outro rafeiro, até mesmo um pastor alemão. Adultos,
velhos, cachorros, saíam cães de todos os tipos de dentro daquele prédio. Podia
tirar as minhas conclusões… Aqueles acumuladores de animais, psicopatas, deviam
ter a casa cheia de gente e cheia de animais. Pensei em dizer à polícia e
fui-me embora para procurar o número. Quando me afastava, ouvi os gritos.
Horríveis gritos de cães, ganindo, chorando.
Estavam
a matá-los.
Teria
de resolver o assunto pelas minhas próprias mãos.
No dia
seguinte, pedi a pistola emprestada ao meu irmão, que é polícia. Ele pensou que
era apenas para mostrar aos meus amigos e eu não o contrariei. Fui para o
prédio Florbela Espanca e aguardei, encostada à porta. Vi uma pessoa a sair.
Uma rapariga vestida de cor de rosa, com os cabelos pintados de ruivo. Não
trazia cão.
“Puta,
agora substituíste os teus cães por gatos?”
Aproximei-me
por trás dela e toquei-lhe no ombro. Quando ela se virou, encostei-lhe a
pistola ao queixo e sussurrei algumas palavras, explicando as consequências dos
seus horríveis actos contra animais.
“Mas eu
não tenho animais! Eu sou alérgica!”, repetia ela.
Tinha
os olhos verdes, delineados, muito abertos, muito brilhantes. O seu ar era
quase cómico. Era como se ela fingisse estar a morrer. Mas não. Ela estava
mesmo a morrer.
ESPIGA PINTO - Desenho de Florbela Espanca
Criação de Personagem - Ficha da Personagem
Nome - Carlos
Apelido - André
Alcunha - Carlos
1. Dimensão Psicofísica
Sexo e Idade - Homem; 31 anos (feitos há pouco tempo)
Tamanho e Peso - Alto e Magro
Aparência - Pele clara, cabelo e barba castanhos; olhos claros, variam entre verde e cinzento; orelhas e nariz grandes; cabelo a rarear
Defeitos - Cicatriz na bochecha esquerda, da primeira vez que se barbeou; marcas de acne; mas está tudo tapado pela barba!
Hereditariedade - Saudável
Aspecto - Restos de um estilo de vida industrial, veste preto e botas de biqueira de aço até hoje; um pouco mal cuidado, só toma banho dia sim dia não; tatuado, mas coberto pela roupa (pentagrama invertido no ombro direito; manga tribal no braço esquerdo; cruz celta muito detalhada na barriga da perna direita)
Acessórios - NON
2. Vida Familiar e Social
Classe Social - Remediada
Profissão - Trabalha numa oficina, de segunda a sábado com domingos escalados; sai tarde muitas vezes; salário podia ser melhor, mas adora o seu trabalho
Habilitações académicas - 12º, com curso profissional para a oficina
Ascendentes - Pais separados (Mãe foi para o Brasil quando Carlos tinha 9 anos; Pai está muito tempo afastado, pois é da Marinha); foi criado por Avó, casa dos 70-75 anos
Estado Civil e descendentes - Solteiro; tinha uma namorada que vivia com ele, mas ela acabou tudo; tem um gato (siamês? Tigrado?)
Nacionalidade - Português; pais e avós são do Ribatejo (Almeirim)
Espiritualidade - Experimentou o neo-paganismo e depois o satanismo; hoje em dia identifica-se como agnóstico
Filiações políticas - Aos 18 anos militou pelo Partido Comunista, depois experimentou o anarquismo organizado; agora, vota em branco (mas exerce sempre o seu direito de voto)
Hobbies - Música core e metal; jazz às escondidas; ir a concertos; sair para os copos; colecciona pequenas figuras de gatos
Relevância social - É amigo do seu amigo
3. Vida Psicológica
Vida amorosa - Muitas noites bem passadas; mas apenas duas namoradas a sério; gosta de se comprometer emocionalmente; ainda não recuperou do término da última relação
Crenças e Sonhos - As pessoas são más (Malice Mizer); um dia quer vir a ter uma oficina própria; gostava de um dia aprender a tocar baixo e fazer uma banda de grindcore ("Rotten Grapes")
Impedimentos e desilusões - A namorada que acabou tudo; o primeiro gato que teve, que foi atropelado; quando não está na noite pode ser muito tímido
Temperamento - Melancolia; calmo (fora do mosh: liberta lá todas as frustrações, medos e nervosismos)
Atitude - Resignado ao facto de nunca poder evoluir
Complexos - Pavor de ratos e ratazanas (um dia foi à casa de banho e estava uma enorme na sanita)
Inteligência - Numérica não é muito boa; musical em altas, também lê filosofia, que compreende
Qualidades - Passa despercebido; cozinha excelentes pratos de bacalhau; está sempre disponível para ouvir os outros; e para os ajudar também, dentro das suas possibilidades
Relação com os outros - Introvertido, liberta-se na noite; mesmo quando está mais afastado, os amigos lembram-se dele todas as vezes; neto único de filho único, é adorado pela avó
Criação de Personagem - Síntese
"O ser humano é um animal cheio de malícia e de miséria". Carlos André pensa isto, a caminho da oficina. Lembra-se frequentemente dela, que o deixou sem explicação. Depois lembra-se que tem de comprar areia para o gato. Terá de ser no dia seguinte... Esta noite os amigos estão à espera para irem ver um concerto numa garagem. Ainda bem que vão. Está mesmo a precisar de uma boa moshada. Talvez um dia venha a ter a sua própria banda... Quando poupar um pouco mais, vai comprar um baixo eléctrico. Recebe uma mensagem. Dali por 15 dias há noite livre de jazz, no bar habitual. Talvez seja piano solo...
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