Foto das nuvens em forma de mapa-mundi (Monte Negro, Brasil, 2012)
Andar de bicicleta ninguém esquece
A
primeira coisa foi a casa na árvore. O meu pai começou a construí-la, colocando
barrotes que tinham sobrado da obra da pérgola de forma a fazer a base daquilo
que viria a ser uma casa: habitáculo de diversão para mim e para a minha irmã,
onde poderia observar pássaros e todos os animais selvagens que vinham
descritos nos fascículos sobre natureza que coleccionávamos. Enquanto o meu pai
criava as fundações, no topo da árvore, mantinha-me dentro de casa, evitando
aquele sol ribatejano abrasador, do tipo que estala a terra e evita o
crescimento de plantas e formas larvares, mantinha-me no fresco, lendo, lendo,
sempre lendo.
Fascículos
sobre a natureza, fascículos sobre actividades de escuteiros mirins, porque é
que nunca me deixaram entrar nos escuteiros (não sabia na altura que era uma
actividade religiosa). Lia o Uma Aventura e lia o Quarteto de Alexandria, lia o
Triângulo Jota e lia o José e seus Irmãos, lia os fascículos sobre a natureza.
E o meu pai construía a casa na árvore.
Quando
as fundações ficaram prontas, ele convidou-nos a subir, para vermos a vista,
para constatarmos como seríamos felizes naquele lugar secreto, uma segunda casa
para nós, com todo o conforto, como nos filmes, como nos livros. Foi só nessa
altura que descobrimos que a árvore escolhida para ser o apoio do habitáculo
era demasiado alta, demasiado íngreme: impossível de subir. Os meus dedos
roídos feriam-se na casca da oliveira, as ervas agudas picavam-me as pernas por
baixo dos calções de licra, tentei subir, caí, voltei a cair. Chorei. Tudo
terminava comigo a chorar.
A minha
irmã era demasiado pequena para sequer tentar.
Como o
projecto da casa da árvore teve de ser abandonado, deixando-se os barrotes a
apodrecer, fundação incompleta, casa de impossibilidades, passámos ao próximo
plano: o carrinho de rolimã. Só sabíamos da sua existência por causa das
aventuras nos livros da Turma da Mônica, mas recebemos a notícia de que o meu
pai iria construir os nossos próprios carrinhos brevemente. Fomos a uma loja de
ferragens para encontrar rolamentos, encontraram-se umas tábuas velhas e o meu
pai pôs mãos à obra.
Eu levava
os nossos cães a passear, soltava-os das correntes por um momento e fingia ser
uma grande treinadora. Propunha-me a ensinar a rafeirada amiga a detectar
drogas e açúcar em sangue de diabéticos, levando-os a ver o campo circundante
com uma minúscula trela (são cães ferozes, são cães de ataque, têm de andar em
trela curta, têm de ter açaime, cães de ataque, cães de ataque). Mas os cães
não me obedeciam. Uma tarde semanal não era o suficiente para os ensinar, mas
na altura eu não sabia, colocava-os a lutar para se entenderem, obrigava-os a
estabelecer uma hierarquia impossível, depois corria tudo mal, tudo mal.
Voltavam à corrente. Saltavam, ladravam, desespero por um pouco de contacto
humano. Sempre na corrente, cães soltos no campo são perigosos, o campo é
perigoso para eles, podem matá-los a tiros de caçadeira, podem envenená-los,
podem ataca-los (cães de ataque).
Ficou
pronto o carrinho de rolimã (rolamentos, rolimã, rola, romã).
Levámo-los
para a rua mais inclinada da aldeia. Na altura não havia capacetes, nem
cotoveleiras, nem joelheiras, nem caneleiras. Eu seria a primeira a descer no
precário mobil construído pelas grossas mãos paternas. Não tive coragem.
Chorei. Tudo terminava comigo a chorar.
A minha
irmã também chorou nesse dia. Também tinha medo de descer. O mais provável era
o bólide desfazer-se a caminho da meta de chegada. Mas não podíamos dizer isso.
Mas
havia uma coisa, para além dos fascículos sobre a natureza, para além dos cães,
para além das árvores, para além do sol que estalava a terra e impedia o
crescimento das larvas. Havia a bicicleta.
Tinha
visto a mais perfeita bicicleta infantil numa loja perto da minha casa. Muito
cara, muito cara, mas de todos os modos perfeita: guiador cor-de-rosa, uma
cestinha na frente, selim estampado com gatos. Queria-a. Precisava de a ter.
Para poder viver aventuras precisava de uma bicicleta: era assim que os miúdos
dos filmes se transportavam de um lado para o outro. Portanto, o meu pai
comprou-nos bicicletas. Não eram como tinha idealizado: a minha era cor de
laranja e branca, um protótipo de bicla de corrida adaptado ao meu tamanho
diminuto. A da minha irmã era azul, com um estampado que parecia ganga,
menorzinha, apropriada ao seu tamanho de micróbio humano. Ambas tinham as
rodinhas de apoio. Ainda não sabíamos andar de bicicleta, mas íamos aprender.
Ao
início correu tudo bem. Dávamos voltas ao pátio, cães ladrando, pólenes
penetrando minhas narinas, alergia à humidade, voltas ao pátio nas pausas da
leitura, voltas ao pátio depois dos desenhos animados. Depois aventurei-me a
sair do pátio: muito complicado, a terra destruída pelo sol não era a direito,
altos e baixos, subidas e descidas, as rodinhas de apoio não andavam por mais
que esforçasse os meus joelhos nodosos a ir para cima e para baixo (na altura
era magra, um pequeno aranhiço, na altura diziam-me que tinha de me esforçar
para ser mais alta, mas os joelhos não cresciam, ficaram sempre do mesmo
tamanho). Então, um dia, o meu pai decidiu mostrar-nos como guiar uma bicicleta
sem as rodinhas.
Não
estava à espera, eu não estava à espera, que viesse a ter medo. Mas tive. A
estrada não era igual à dos filmes, as casas não se sucediam com seus jardins
frontais a uma estrada de asfalto, sempre a direito, sempre cinzenta e sempre a
direito. Aquela estrada estava retalhada em buracos e buraquinhos, cheia de
água da chuva, cheia de lama. Com lombas, subidas, descidas. Assim que
experimentei a bicicleta sem as rodinhas, caí. Tudo terminava comigo a chorar.
Depois
crescemos e a casa na árvore apodreceu, o carrinho de rolimã foi transformado
em tábuas para lenha, a bicicleta ficou algures a ganhar ferrugem, só os livros
se mantinham fiéis a si mesmos. Agora tínhamos ocupações, tinha de sair cedo
para andar de cavalo, tínhamos de ver os filmes que alugávamos no Blockbuster
sem falta, tínhamos de gravar os desenhos animados para não perdermos nenhum
episódio (não achas que já não tens idade para ver isso?), tinha de estudar
matemática, tinha de treinar os meus cães, parasitados, enviesados, doentes,
envenenados, tinha de fazer coisas, tinha de fazer. Esqueci os fascículos e o
sol tornou-se um pesadelo. Rachas na terra, rachas na minha cabeça, sol na
moleirinha até fazer derreter os cabelos. E as alergias, tantas alergias.
Um Verão,
fomos à terra. A terra do meu pai, que fica no Brasil. O ar fresco, cheiro a
chuva, mitos de infância (uma vez tomei banho na chuva, com sabonete e tudo), o
céu. Apenas o céu, largo, infinito, desfeito em milhares de matizes de cor. Um
dia vamos pescar no rio (infância), um dia vamos ver o seminário (infância), um
dia vamos. Passava grandes tardes com os meus primos, a comer melancia, a comer
pastel, tomando chimarrão. O frio não era tão frio. O calor não era tão quente.
O céu pleno de nimbus flácidas, que se iam desfazendo.
Vamos passear
de bicicleta?, perguntava-me a minha prima. Não sei andar de bicicleta,
respondi à minha prima. Uma vez aprendi, expliquei, mas depois esqueci-me como
se faz.
Andar
de bicicleta ninguém esquece.
Com
toda a paciência, foi buscar a sua bicicleta, em nada semelhante ao veículo
laranja e branco onde tinha tentado a primeira vez. Maior, preparada para mais
tipos de terreno. Pus-me em cima dela e ela explicou-me. O processo era simples:
dar aos pedais. Mas como me equilibrar?
Continua
sempre a pedalar.
Ela
apoiou-me e eu fui andando. Ela apoiou-me e depois largou-me e eu continuei a
andar. Fui dar uma volta pelo quarteirão. Tal e qual como imaginava: a estrada
asfaltada, direita, as vivendas com jardins frontais, árvores na calçada
deixando cair frutos do tamanho de abóboras, folhas mortas, sapos saltitando
entre os raios das rodas. Fui andando, sempre andando, pedalando. Rápido,
sempre mais rápido, com toda a confiança. O selim magoa um pouco as partes, mas
sou rápida, como uma brisa, como uma flecha. O céu avermelhado mostra nuvens
com a forma do mapa-mundi. O céu rosado derrete-se em noite, está quente mas
está fresco, sinto o ar entrando para a minha laringe, para os meus brônquios,
bronquíolos, alvéolos pulmonares, o céu é tão grande. Livre, sou livre.
Caio.
Desiquilibro-me e caio, joelho nodoso em cima da borda da calçada. Sangue.
Em
frente a uma casa, sentados em cadeiras de praia, dois cotas olham para mim.
Riem. Riem em brasileiro.