sexta-feira, 10 de março de 2017

Andar de bicicleta ninguém esquece

Foto das nuvens em forma de mapa-mundi (Monte Negro, Brasil, 2012)
 
 
 
 
 
 
 
 
 Andar de bicicleta ninguém esquece
 
                A primeira coisa foi a casa na árvore. O meu pai começou a construí-la, colocando barrotes que tinham sobrado da obra da pérgola de forma a fazer a base daquilo que viria a ser uma casa: habitáculo de diversão para mim e para a minha irmã, onde poderia observar pássaros e todos os animais selvagens que vinham descritos nos fascículos sobre natureza que coleccionávamos. Enquanto o meu pai criava as fundações, no topo da árvore, mantinha-me dentro de casa, evitando aquele sol ribatejano abrasador, do tipo que estala a terra e evita o crescimento de plantas e formas larvares, mantinha-me no fresco, lendo, lendo, sempre lendo.

                Fascículos sobre a natureza, fascículos sobre actividades de escuteiros mirins, porque é que nunca me deixaram entrar nos escuteiros (não sabia na altura que era uma actividade religiosa). Lia o Uma Aventura e lia o Quarteto de Alexandria, lia o Triângulo Jota e lia o José e seus Irmãos, lia os fascículos sobre a natureza. E o meu pai construía a casa na árvore.

                Quando as fundações ficaram prontas, ele convidou-nos a subir, para vermos a vista, para constatarmos como seríamos felizes naquele lugar secreto, uma segunda casa para nós, com todo o conforto, como nos filmes, como nos livros. Foi só nessa altura que descobrimos que a árvore escolhida para ser o apoio do habitáculo era demasiado alta, demasiado íngreme: impossível de subir. Os meus dedos roídos feriam-se na casca da oliveira, as ervas agudas picavam-me as pernas por baixo dos calções de licra, tentei subir, caí, voltei a cair. Chorei. Tudo terminava comigo a chorar.

                A minha irmã era demasiado pequena para sequer tentar.

                Como o projecto da casa da árvore teve de ser abandonado, deixando-se os barrotes a apodrecer, fundação incompleta, casa de impossibilidades, passámos ao próximo plano: o carrinho de rolimã. Só sabíamos da sua existência por causa das aventuras nos livros da Turma da Mônica, mas recebemos a notícia de que o meu pai iria construir os nossos próprios carrinhos brevemente. Fomos a uma loja de ferragens para encontrar rolamentos, encontraram-se umas tábuas velhas e o meu pai pôs mãos à obra.

                Eu levava os nossos cães a passear, soltava-os das correntes por um momento e fingia ser uma grande treinadora. Propunha-me a ensinar a rafeirada amiga a detectar drogas e açúcar em sangue de diabéticos, levando-os a ver o campo circundante com uma minúscula trela (são cães ferozes, são cães de ataque, têm de andar em trela curta, têm de ter açaime, cães de ataque, cães de ataque). Mas os cães não me obedeciam. Uma tarde semanal não era o suficiente para os ensinar, mas na altura eu não sabia, colocava-os a lutar para se entenderem, obrigava-os a estabelecer uma hierarquia impossível, depois corria tudo mal, tudo mal. Voltavam à corrente. Saltavam, ladravam, desespero por um pouco de contacto humano. Sempre na corrente, cães soltos no campo são perigosos, o campo é perigoso para eles, podem matá-los a tiros de caçadeira, podem envenená-los, podem ataca-los (cães de ataque).

                Ficou pronto o carrinho de rolimã (rolamentos, rolimã, rola, romã).

                Levámo-los para a rua mais inclinada da aldeia. Na altura não havia capacetes, nem cotoveleiras, nem joelheiras, nem caneleiras. Eu seria a primeira a descer no precário mobil construído pelas grossas mãos paternas. Não tive coragem. Chorei. Tudo terminava comigo a chorar.

                A minha irmã também chorou nesse dia. Também tinha medo de descer. O mais provável era o bólide desfazer-se a caminho da meta de chegada. Mas não podíamos dizer isso.

                Mas havia uma coisa, para além dos fascículos sobre a natureza, para além dos cães, para além das árvores, para além do sol que estalava a terra e impedia o crescimento das larvas. Havia a bicicleta.

                Tinha visto a mais perfeita bicicleta infantil numa loja perto da minha casa. Muito cara, muito cara, mas de todos os modos perfeita: guiador cor-de-rosa, uma cestinha na frente, selim estampado com gatos. Queria-a. Precisava de a ter. Para poder viver aventuras precisava de uma bicicleta: era assim que os miúdos dos filmes se transportavam de um lado para o outro. Portanto, o meu pai comprou-nos bicicletas. Não eram como tinha idealizado: a minha era cor de laranja e branca, um protótipo de bicla de corrida adaptado ao meu tamanho diminuto. A da minha irmã era azul, com um estampado que parecia ganga, menorzinha, apropriada ao seu tamanho de micróbio humano. Ambas tinham as rodinhas de apoio. Ainda não sabíamos andar de bicicleta, mas íamos aprender.

                Ao início correu tudo bem. Dávamos voltas ao pátio, cães ladrando, pólenes penetrando minhas narinas, alergia à humidade, voltas ao pátio nas pausas da leitura, voltas ao pátio depois dos desenhos animados. Depois aventurei-me a sair do pátio: muito complicado, a terra destruída pelo sol não era a direito, altos e baixos, subidas e descidas, as rodinhas de apoio não andavam por mais que esforçasse os meus joelhos nodosos a ir para cima e para baixo (na altura era magra, um pequeno aranhiço, na altura diziam-me que tinha de me esforçar para ser mais alta, mas os joelhos não cresciam, ficaram sempre do mesmo tamanho). Então, um dia, o meu pai decidiu mostrar-nos como guiar uma bicicleta sem as rodinhas.

                Não estava à espera, eu não estava à espera, que viesse a ter medo. Mas tive. A estrada não era igual à dos filmes, as casas não se sucediam com seus jardins frontais a uma estrada de asfalto, sempre a direito, sempre cinzenta e sempre a direito. Aquela estrada estava retalhada em buracos e buraquinhos, cheia de água da chuva, cheia de lama. Com lombas, subidas, descidas. Assim que experimentei a bicicleta sem as rodinhas, caí. Tudo terminava comigo a chorar.

                Depois crescemos e a casa na árvore apodreceu, o carrinho de rolimã foi transformado em tábuas para lenha, a bicicleta ficou algures a ganhar ferrugem, só os livros se mantinham fiéis a si mesmos. Agora tínhamos ocupações, tinha de sair cedo para andar de cavalo, tínhamos de ver os filmes que alugávamos no Blockbuster sem falta, tínhamos de gravar os desenhos animados para não perdermos nenhum episódio (não achas que já não tens idade para ver isso?), tinha de estudar matemática, tinha de treinar os meus cães, parasitados, enviesados, doentes, envenenados, tinha de fazer coisas, tinha de fazer. Esqueci os fascículos e o sol tornou-se um pesadelo. Rachas na terra, rachas na minha cabeça, sol na moleirinha até fazer derreter os cabelos. E as alergias, tantas alergias.

                Um Verão, fomos à terra. A terra do meu pai, que fica no Brasil. O ar fresco, cheiro a chuva, mitos de infância (uma vez tomei banho na chuva, com sabonete e tudo), o céu. Apenas o céu, largo, infinito, desfeito em milhares de matizes de cor. Um dia vamos pescar no rio (infância), um dia vamos ver o seminário (infância), um dia vamos. Passava grandes tardes com os meus primos, a comer melancia, a comer pastel, tomando chimarrão. O frio não era tão frio. O calor não era tão quente. O céu pleno de nimbus flácidas, que se iam desfazendo.

                Vamos passear de bicicleta?, perguntava-me a minha prima. Não sei andar de bicicleta, respondi à minha prima. Uma vez aprendi, expliquei, mas depois esqueci-me como se faz.

                Andar de bicicleta ninguém esquece.

                Com toda a paciência, foi buscar a sua bicicleta, em nada semelhante ao veículo laranja e branco onde tinha tentado a primeira vez. Maior, preparada para mais tipos de terreno. Pus-me em cima dela e ela explicou-me. O processo era simples: dar aos pedais. Mas como me equilibrar?

                Continua sempre a pedalar.

                Ela apoiou-me e eu fui andando. Ela apoiou-me e depois largou-me e eu continuei a andar. Fui dar uma volta pelo quarteirão. Tal e qual como imaginava: a estrada asfaltada, direita, as vivendas com jardins frontais, árvores na calçada deixando cair frutos do tamanho de abóboras, folhas mortas, sapos saltitando entre os raios das rodas. Fui andando, sempre andando, pedalando. Rápido, sempre mais rápido, com toda a confiança. O selim magoa um pouco as partes, mas sou rápida, como uma brisa, como uma flecha. O céu avermelhado mostra nuvens com a forma do mapa-mundi. O céu rosado derrete-se em noite, está quente mas está fresco, sinto o ar entrando para a minha laringe, para os meus brônquios, bronquíolos, alvéolos pulmonares, o céu é tão grande. Livre, sou livre.

                Caio. Desiquilibro-me e caio, joelho nodoso em cima da borda da calçada. Sangue.

                Em frente a uma casa, sentados em cadeiras de praia, dois cotas olham para mim. Riem. Riem em brasileiro.